A pandemia escancarou uma ação aparentemente simples: a importância de lavar bem as mãos, com água e sabão. Porém, isso soava como trágico para 65% de famílias das áreas rurais do Brasil que não estavam ligadas a uma rede de abastecimento de água, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2013).
A implementação de redes de saneamento básico é, sem dúvida, um dos principais marcos civilizatórios. Suas externalidades são tão importantes para uma população que a ONU colocou o tema como um dos principais alvos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Uma estrutura de água e esgoto bem estruturada influencia diretamente o meio ambiente e os rios poluídos, como o Tietê, que cortam as principais cidades do Brasil e estão aí para nos lembrar disso.
A falta de água tratada e a insuficiência de rede de esgoto impactam justamente os mais vulneráveis, a camada mais pobre da população e, nesse grupo, especialmente as crianças. Os indicadores sociais sobre a baixa renda das famílias e as crises sanitárias são reflexos desse problema. Em 2019, 2.734 mortes e 273 mil internações na rede pública de saúde foram causadas por doenças de veiculação hídrica, como diarreia, leptospirose, dengue, doenças de pele, malária e esquistossomose. A maior parte dessas internações poderia ter sido evitada caso a população tivesse acesso à infraestrutura de saneamento básico, como mostrou o estudo “Saneamento e Doenças de Veiculação Hídrica” de 2019, do Instituto Trata Brasil. Crianças mais saudáveis faltariam menos às aulas e adultos não se ausentariam do trabalho por causa de doenças.
Se é uma questão tão importante, por que estamos tão atrasados? Talvez pelos mesmos motivos que passamos os últimos trinta anos falando da necessidade de uma reforma tributária sem dar um passo mais concreto. São assuntos que todos concordam que precisam ser melhorados, mas pouco se define sobre o rumo a ser tomado.
No caso específico da água tratada e do saneamento básico, a governança ganha muita complexidade ao esbarrar em diversas áreas e níveis de governo. Assim como os tributos, é uma questão repleta de disparidades regionais e de informalidades que reduzem as possibilidades de levar água e esgoto para as favelas e os assentamentos.
Para entender a origem desse imbróglio, basta observar como se dá a definição dos responsáveis pela solução. A Constituição brasileira prevê que compete à União a instituição de diretrizes, que a promoção do saneamento deve ser compartilhada entre a União, os estados e os municípios e que a prestação de serviços de interesse local cabe aos municípios. Vamos combinar que esse é um campo propício para debates jurídicos, pois historicamente, os serviços de água e saneamento básico sempre foram atendidos por companhias estaduais. Ou seja, na prática, em mais de dois terços dos municípios do país, as pessoas recebem conta de serviços prestados de companhias estaduais de água e esgoto.
Então, é aí que está o cerne da questão. Para que sejam eficientes e abasteçam a população ininterruptamente, as redes de água e saneamento demandam muito investimento. Mas como fazer isso se a grande maioria dos estados e municípios são devedores ou têm as finanças em desordem? E, além da baixa capacidade de investimento, enormes déficits de habitação e urbanização diminuem ainda mais a capacidade de investir.
Por outro lado, é nesse ambiente, geralmente pobre e informal, que o fornecimento de água e saneamento pode se tornar uma moeda de troca para fomentar o clientelismo político. É comum, por exemplo, ver políticos conquistarem a fidelidade eleitoral ao oferecer caminhões pipas para comunidades periféricas. Mesmo quando ocorrem investimentos significativos, o ciclo político de eleições a cada 4 anos gera a descontinuidade nos projetos, além de que “obra enterrada” não rende votos.
É nesse mar de complexidades, tão característico da nossa história, que navegamos nas últimas décadas. O Banco Mundial mostrou que, nesse período, o Brasil apresentou o resultado dos serviços de água e saneamento com um desempenho pior do que outros setores públicos, como infraestrutura e telecomunicações.
Na tentativa de enfrentar a questão, em 2013 foi publicado o PLANSAB (Plano Nacional de Saneamento Básico), que previa metas de universalização dos serviços até 2033. Porém, o plano se deparou com a evidente insuficiência financeira de estados e municípios e não decolou.
Agora, temos o Novo Marco do Saneamento, que entrou em vigor em 2020 e estabeleceu um novo ordenamento com o intuito de minimizar as complexidades e dar uma maior segurança jurídica para a atuação do setor privado. Entre as novidades dessa legislação, três merecem um olhar atento:
1) o estabelecimento de um novo arcabouço jurídico para a prestação de serviços regionalizada, isto é, a concentração de municípios num único contrato, o que permite obter ganhos de escala e garantir a relação econômico-financeira entre municípios que se posicionem como “filé” e “osso”, ou seja, aqueles que apresentam recebem um retorno para seus investimentos e outros que se tornaram inviáveis sozinhos;
2) a ampliação da competência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) que ganha o papel de emanar normas de referência para o setor, aspecto fundamental quando se tem quase uma centena de agências infranacionais;
3) a igualdade de condições competitivas entre empresas públicas e privadas, incentivando a concorrência e, consequentemente, maiores chances de investimentos e menores preços.
AMPLIAÇÃO DOS INVESTIMENTOS
Apesar da dificuldade que o novo marco traz para as peças do jogo político, os investimentos em distribuição de água e saneamento têm sido ampliados. A avaliação “Avanços do Novo Marco Legal do Saneamento Básico no Brasil – 2023”, publicada recentemente pelo Trata Brasil, relata que, nos últimos três anos, ocorreram processos licitatórios significativos no setor de saneamento, incluindo a licitação de blocos regionais para a prestação dos serviços. Somados, esses projetos em curso preveem investimentos de quase R$ 68 bilhões e impactam mais de 31 milhões de pessoas. Sem dúvida, é um resultado para se comemorar, mas ainda há um longo caminho pela frente até a universalização do saneamento básico, que requer um investimento dez vezes maior do que esse constatado, realizado a longo prazo e pouco suscetível a retrocessos.
Para se adequar ao novo marco regulatório, a indústria química de cloro-álcalis, que fabrica produtos essenciais para o tratamento de água e esgoto e para a produção de tubos de PVC, está investindo em novas plantas e na ampliação das existentes.
É importante perseverar e garantir a continuidade dos progressos já obtidos. O novo arcabouço jurídico é o resultado de um longo debate no Congresso, mas ainda pode ser melhorado. Em resumo, é como falava o líder chinês Deng Xiao Ping: “não importa a cor do gato, contanto que ele cace o rato”. Seja como for, investimentos nesse setor são essenciais para a construção de um país mais desenvolvido e menos injusto.
**Milton Rego é Presidente-Executivo da Abiclor e da Clorosur. Engenheiro mecânico, economista e especialista em gestão, o executivo acumula mais de 30 anos de atuação na indústria em empresas nacionais e multinacionais.
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