Quem conversa por poucos minutos com Telines Basilio, o “Carioca”, descobre por que tanto dizem que ele é uma unanimidade. De cara, não há como não gostar dele. Falante, sorriso largo, firme quando tem que ser – e, sem sombra de dúvida, uma simpatia. O executivo do setor de reciclagem lidera hoje nada menos do que 355 cooperados em 6 unidades da COOPERCAPS, cooperativa de coleta seletiva, que, só em 2021, processou 21 mil toneladas de resíduos em São Paulo, e é responsável por 25% de todos lixo gerado na maior cidade do país.
Os cooperados são jovens em vulnerabilidade social, em situação de rua, egressos do sistema prisional, refugiados, LGBTQI+, idosos, entre outros.
“Completamos 20 anos de atuação – aos poucos fomos entendendo que nosso negócio tem a missão de reciclar vidas. Resgatamos a dignidade dessas pessoas e hoje somos geradores de emprego e renda”
Basilio sabe o que diz: ao deixar o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor em São Paulo, o executivo chegou a viver 12 anos nas ruas, empurrando carroças e revirando lixo para sobreviver até que, em 2003, surgiu a oportunidade de formar uma cooperativa com o auxílio da prefeitura. Ele assim despontou como uma liderança. “É com a economia circular que conseguimos diminuir a mais alta vulnerabilidade social deste país”.
Na entrevista a seguir, ele conta um pouco de sua história, fala sobre seu trabalho atual, e principalmente, sobre a importância do reconhecimento da profissão dos catadores, que prestam um serviço de utilidade pública fundamental: “São gestores ambientais”, diz.
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NETZERO: Você hoje lidera um conglomerado de cooperativas de reciclagem que não para de crescer. Qual o seu modelo de negócios?
TELINES BASILIO: A gestão de resíduos é um serviço essencial e é a base da economia circular. Os profissionais que trabalham recolhendo e separando estes resíduos devem ser reconhecidos – e remunerados. Portanto a profissionalização das cooperativas é uma meta de todos nós. A COOPERCAPS completa agora 20 anos e é um negócio constituído por várias cooperativas singulares, que contam com uma rede de comercialização. Ela foi organizada de forma a gerar um fluxo de caixa positivo a partir do seu próprio negócio de coleta e comercialização de resíduos. Hoje geramos empregos e renda para 355 cooperados em 6 filiais na cidade de SP. No início, trabalhávamos apenas com pessoas em situação de rua e carroceiros. Aos poucos fomos entendendo que nosso negócio não poderia ter finalidade lucrativa, e sim a missão de reciclar vidas. Passamos a resgatar a dignidade destes trabalhadores. As pessoas vem nos procurar e vamos absorvendo na medida que conseguimos. Em cada uma de nossas unidades, a cada 4 ou 5 toneladas de resíduos geramos mais um posto de trabalho.
Qual o perfil dos profissionais que trabalham nas cooperativas de reciclagem?
Quando o trabalhador procura uma cooperativa de reciclagem é porque ele está na última parada, é seu último respiro.
Ninguém que chega aqui é ambientalista e quer salvar o planeta. É porque a fome e a miséria bateram à sua porta. Só a partir de então é que este trabalhador percebe do quanto a sua função é importante. A dignidade, a valorização e a importância do seu papel na sociedade fazem toda a diferença para a vida dele. Nosso trabalho nada tem de assistencialista: não somos pobres coitados. Somos profissionais ligados à área de sustentabilidade.
Estes profissionais são invisíveis para a sociedade?
Sim. Isso quando não sofrem os mais variados tipos de preconceitos.
Ninguém sabe quem é o catador da sua rua, ninguém vê quando ele passa, ninguém sabe seu nome. Entretanto, 90% do que é reciclado no país passou em algum momento pelas mãos de catadores e catadoras – são mais de 1 milhão de pessoas nesta categoria. Trata-se de um protagonismo!
O problema é que menos de 1% destes trabalhadores está em cooperativas. A maioria trabalha na rua, um trabalho de tração humana, recebendo um quarto de salário, quando muito. Ainda existem mais de 2.300 lixões e mais de 100 mil trabalhadores disputando o pão de cada dia com ratos e urubus.
Infelizmente, muitos profissionais, por não terem tido oportunidades, acabam ficando na mão de atravessadores, ou comércios paralelos, que não valorizam seu trabalho e acabam diminuindo seu pagamento. Eu fiz um trabalho recente na Paraíba e percebi a diferença de renda em relação ao Sudeste. Isso me deixou muito triste, havia catadores ganhando 200 reais por mês e estavam felizes… Como um trabalhador pode ganhar menos um salário e ser feliz? Então construímos a CONATREC que é uma federação nacional com o foco de construir políticas públicas voltadas aos catadores de material reciclado. Pela contratação destes profissionais pelos municípios, pelo pagamento do serviço ambiental urbano, pela valorização destes profissionais. São prestadores de serviço de utilidade pública que devem ser reconhecidos e pagos pelo poder público.
Você já viveu na pele a situação destes catadores?
Sim. Eu cheguei em SP há 36 anos. Infelizmente não consegui oportunidades e, para piorar, era dependente químico. Foi então que conheci o que era o lixo. Um dia, um amigo me chamou para para “garimpar” (ou seja: revirar lixo). E assim, garimpando, fiquei 12 anos. Em 2002, entrei no senso da prefeitura que planejava rever o plano diretor e apoiar catadores organizados em cooperativas. Ofereceram um curso de introdução ao cooperativismo e daí surgiu a COOPERCAPS.
A cooperativa era um projeto de vida – na rua a gente até ganhava mais. Mas ali surgiu um líder dentro de mim. Acabei de me tornando o presidente e logo ganhei a oportunidade de fazer um projeto-piloto de educação ambiental num convênio com a cidade japonesa de Osaka. Passei a me qualificar. Na volta do Japão, a cooperativa começou a investir mais em qualificação profissional. Somos hoje a cooperativa mais produtiva do país que mais gera mais emprego e renda. E agora meu maior sonho virou realidade: criamos o primeiro centro-escola voltado a catadores e catadoras de material reciclado. Oferecemos desde alfabetização até cursos técnicos, de digitalização. Temos parceria com Sebrae e outras grandes instituições de excelência na área de educação.
Qual o papel da educação nesta nova economia?
O numero de reciclagem no Brasil hoje é pífio, não passa de 2%. A gente só vai conseguir elevar este número quando houver a obrigatoriedade da educação ambiental na grade curricular das escolas. A Política Nacional de Resíduos Sólidos fala em responsabilidade compartilhada. Ou seja: há a preocupação com a indústria, a distribuição, mas a gente não dá atenção à figura mais importante da economia circular: o consumidor. Ele tem pouca conscientização, pouca informação. Ele tem que entender que a sua mudança de atitude vai transformar vidas.
Quando a gente fala que o Brasil conseguiu recuperar 100% de cada lata produzida, por exemplo, isso significa educação. Estas latas nem chegam na cooperativa porque, na balada, todo mundo já sabe que aquela latinha é um resíduo que tem um valor agregado. Então, se você for em um evento, vai reparar que muita gente guarda a latinha. Precisamos pegar esta expertise, que valoriza a embalagem de alumínio, e multiplicar junto aos outros resíduos, como plástico, papel, vidro. Tudo é educação.
Como uma mudança de atitude transforma vidas?
A minha vida foi transformada. Hoje em dia sou uma referência. Sou porta-voz de mais de 1 milhão de pessoas. Muita gente que já me tratou de forma pejorativa quando eu era catador, agora me enxerga de outra forma. E minha missão é a de mostrar que este trabalho é tão digno como o de qualquer outra profissão. Catador não é apenas alguém que cata – dentro dele está o gestor ambiental, a logística, a contabilidade, a saúde, a segurança. Está tudo ali.
*este conteúdo faz parte do Especial “Economia Circular”, publicado mensalmente por NetZero, com o patrocínio da Papirus.
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