Quando é noite de sushi na casa do administrador Humberto Bahia, 43, no Rio de Janeiro, uma questão bastante trivial incomoda cada vez mais. Afinal, para onde vai aquele monte de potinhos plásticos que vêm com a comida? O restaurante se preocupa em recolher as embalagens e dar a elas uma destinação adequada? A Comlurb-RJ (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) consegue reaproveitar o material destinado à coleta seletiva?
Infelizmente, não é preciso ser nenhum expert em logística para imaginar a resposta. A esmagadora maioria dos restaurantes e serviços de delivery nem sonha ainda com a possibilidade de dar uma destinação adequada ao papel e ao plástico que transportam seus alimentos. Já as empresas de limpeza pública urbana ainda engatinham em seus programas de reciclagem.
Segundo o “Mapeamento dos Fluxos de Recicláveis Pós-Consumo no Estado do Rio de Janeiro”, realizado pela Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro), enquanto 50 mil toneladas de papel e papelão, por exemplo, são recicladas por ano na região, outras 740 mil toneladas são aterradas. Na média, para cada 1 quilo de resíduo reciclável que é alvo de coleta seletiva, 8 quilos do mesmo material no estado vão parar em aterros sanitários – gerando, além do desperdício de recursos econômicos, poluição e degradação ambiental. Isso sem considerar ainda que nem todo lixo atendido por coleta seletiva é devidamente reciclado e reintroduzido na cadeia produtiva.
Ainda segundo o mapeamento da Firjan, 319 mil toneladas de resíduos deixaram de ser recicladas no Estado em 2019, o que representa uma perda econômica de R$ 1 bilhão em materiais que poderiam ser reaproveitados. “É um volume absurdo”, critica o administrador Humberto Bahia. “E vejo que ninguém discute, ainda, a questão dos resíduos no mundo do e-commerce”, completa.
Bahia tem conhecimento de causa. Há 12 anos atuando no setor de transportes, ele resolveu fundar, em 2016, a VaiFácil, startup de logística com forte aderência à agenda ESG – recentemente, recebeu o selo CO2 Neutro, é uma empresa Lixo Zero e está em processo de certificação pelo Sistema B.
Todas as emissões de carbono emitidas por uma entrega feita pela VaiFácil hoje são compensadas na mesma proporção por meio da compra de créditos de carbono no projeto Usina Hidrelétrica Salto Pilão, em Santa Catarina. Isso permitiu que a startup se considerasse uma empresa de logística integrada sustentável.
Especializada no segmento conhecido como “last mile”, ou seja, a ponta das operações de entrega de produtos vendidos via e-commerce, a startup atua no Rio de Janeiro e em São Paulo e possui clientes como Lojas Renner, Reserva, Americanas, Submarino e Shoptime. Somente na Região Metropolitana do Rio, realiza, em média, 100 mil entregas por mês.
DO TRANSPORTE DE EXECUTIVOS ÀS ENTREGAS DO E-COMMERCE
Antes de fundar a VaiFácil, Bahia tinha uma empresa de mobilidade urbana focada em oferecer serviços de alto nível a executivos estrangeiros. “Montei uma empresa para atender altos executivos expatriados, com serviço bilíngue e diferenciais de segurança, de mobilidade e deslocamento”, conta. “Na época eu enxergava nisso uma grande oportunidade de negócio, afinal, que outra cidade do planeta enfrentou uma Jornada Mundial da Juventude, uma Copa do Mundo e uma Olimpíada em sequência?”, diz, referindo-se aos eventos que ocorreram no Rio nos anos em 2013, 2014 e 2016, respectivamente. “A oportunidade que eu tive de aprendizado e de trocas nesses eventos foi fantástica, foi um PhD em logística.”
Em 2016, Bahia chegou a celebrar um contrato de exclusividade com a relojoaria suíça de luxo Omega, uma das principais patrocinadoras das Olimpíadas. “Toda a logística deles em relação ao evento ficou com a gente, e toda essa negociação foi feita fora do Brasil, foi uma conquista”, lembra. Mas o ciclo de eventos mundiais no Rio acabou, e uma dúvida se abateu sobre a empresa e o empresário. “Quando terminou o ciclo olímpico, a minha preocupação era com o que ia acontecer com o negócio”, conta.
A resposta viria alguns meses depois – e, como nas melhores histórias de negócio, viria a partir de um problema concreto. “Em 2016 eu estava muito mexido com uma coisa: se eu quero transportar um móvel, eu tenho que achar um serviço de frete, depois tenho de ficar em cima dele, tenho que trabalhar pra ele para garantir que tudo corra bem. Durante uma viagem de estudos em São Francisco, eu conheci um aplicativo que fazia esse serviço de logística, mas só para empresas”, lembra Bahia.
Ao mesmo tempo, ele percebia que no Brasil crescia o serviço de self storage, e que a dor deles era justamente a logística. “Quando alguém pede indicação de uma empresa de transportes no self storage, a partir do momento em que indicam alguém, eles se tornam corresponsáveis, as pessoas ficam ligando no serviço para cobrar”, diz.
A partir desse insight, o administrador conta que resolveu redirecionar a expertise do transporte de passageiros de alto nível para o planejamento logístico. Começou a montar uma primeira versão do sistema proprietário de gestão de entregas, incluindo alguns diferenciais que viriam a ser decisivos no futuro.
Em 2018, ele foi a uma feira intermodal, montou um estande e se apresentou como uma startup de logística voltada para soluções de e-commerce que fazia entregas em “todas as áreas de risco do Rio de Janeiro”.
Entregas em áreas de risco? A afirmação despertou curiosidade em importantes players do varejo nacional, já que a dificuldade de atuar em zonas que muitas vezes nem CEP possuem, em especial no Rio, é um dos calcanhares de Aquiles do comércio digital. “Resultado: fizemos uma parceria com a Lojas Renner em setembro daquele ano, e em novembro fechamos com a Americanas”, celebra Bahia.
CONTRATAÇÃO DE MOTORISTAS QUE MORAM PERTO DOS HUBS É DIFERENCIAL
Embora “tudo comece com o G de governança”, segundo Bahia, foi o S de social que chamou a atenção dos primeiros clientes da VaiFácil. Afinal, o segredo da empresa para atuar em áreas de risco é justamente trabalhar com entregadores que residem próximos às bases de coleta de mercadorias.
Atualmente, a startup conta com mais de mil parceiros de entregas, entre motoristas de carros e motos, ciclistas e entregadores que fazem percursos a pé. Assim, a companhia tenta evitar dois obstáculos difíceis de transpor, na logística do e-commerce: a falta de infraestrutura para realizar entregas e a insegurança.
“No nosso modelo de negócio, sempre tivemos o S muito forte. Desde o início a gente espalhava pela cidade minibases para que o motorista fosse coletar as entregas na minibase mais próxima de onde morasse. Uma coisa leva a outra, porque assim a gente usa menos o carro, emite menos CO2, tem menos custo de manutenção dos veículos, menos gasto de combustível. No fim, sobra mais dinheiro e mais tempo para o entregador e melhora a qualidade de vida dele”, descreve Bahia.
De acordo com o empreendedor, a dimensão social da empresa foi construída “de forma intuitiva”. “Não temos exclusividade com nenhum motorista parceiro. Todos são microempreendedores e começamos a empoderá-los para que cresçam e ofereçam um serviço de excelência.”
Outra premissa do negócio, com a pulverização por entregadores locais, o uso intensivo de tecnologia para rastear e gerir pedidos e a construção de “minibases” de distribuição em que os produtos não ficam armazenados, mas apenas circulam de maneira ágil, é a flexibilidade.
“A estratégia do modelo de negócio é ser ágil e inteligente, com a adaptabilidade necessária para enfrentar a disrupção histórica do varejo que começou com os smartphones e a digitalização. Estamos cada vez mais nos posicionando para atender novas demandas do consumidor.”
Uma dessas novas demandas, adianta, é justamente o cuidado com a agenda ESG, “que a gente assumiu e agora estamos começando a entender melhor. Estamos no início dessa jornada”, reconhece. “Eu, enquanto consumidor, estou disposto a pagar um valor a mais se me identifico com os propósitos de determinada empresa.”
Para o empresário, esse é um caminho sem volta. “Quem não começar a olhar para esse futuro, que é também o agora, é hoje, depois vai pagar muito mais caro.”
Até aqui, a estratégia tem funcionado. Sem aportes externos, a VaiFácil quadruplicou seu faturamento em 2020, e, no ano passado, cresceu mais 90% com a chegada de novos clientes, como o grupo Arezzo e a Casa & Vídeo, e a parceria de “last mile“ firmada com a Luft, uma das maiores operadoras de logística do Brasil. Para este ano, a startup prevê expandir sua operação para Belo Horizonte, Recife, Salvador e Brasília.
Outra novidade no radar é o lançamento de um projeto piloto de logística reversa em parceria com uma grande varejista.
LOGÍSTICA REVERSA É APOSTA PARA O FUTURO PRÓXIMO
Embora ainda seja um segmento minoritário na operação da VaiFácil, Bahia olha com carinho para o setor de logística reversa. “Como estratégia de negócio ele é muito importante. Em termos de faturamento, estamos apenas iniciando, mas ele pode vir a representar 50% do total em muito pouco tempo”, avalia.
O serviço compreende justamente aquilo de que Bahia diz sentir falta quando pede comida em casa. A preocupação do fabricante ou vendedor de recolher os resíduos, ou mesmo produtos intactos, na casa do consumidor.
Ele exemplifica: “Às vezes o cliente quer comprar um tênis pelo site e já encomenda três pares, digamos, de tamanho 40, 41 e 42, sabendo que vai ficar com um e devolver os outros. Ou então chega a ele um produto danificado e a marca o recolhe em casa. Também fazemos a coleta de embalagens, que retornam para a indústria antes que sejam jogadas em um aterro sanitário”, completa. Com isso, aumenta a satisfação do cliente e diminui a quantidade astronômica de desperdício de materiais apontado no estudo da Firjan. “Eu sempre digo que lixo é resíduo fora de lugar”, conclui o empresário.
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