No que muitos ambientalistas têm classificado como “um momento histórico”, a Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEA, na sigla em inglês) anunciou no início do mês a criação de um comitê de negociação para regular a poluição plástica no planeta.
Apesar do gesto estar apenas em sua fase embrionária, já que o comitê só anunciará resoluções no fim de 2024, duas questões fundamentais despertaram o otimismo dos atores envolvidos com a causa:
- O tratado resultante desse trabalho será, pela primeira vez, juridicamente vinculante, ou seja, preverá regras globais e penalizações por descumprimento;
- A decisão foi tomada por consenso, como era obrigatório, o que significa que todos os 175 Estados-membros concordaram com a urgência da questão.
Não é para menos. A poluição plástica é dos maiores problemas ambientais da atualidade. Ano após ano, avolumam-se estudos que comprovam o estado crítico que alcançamos. A face mais visível é a do lixo plástico nos oceanos: estudo realizado pela Fundação Ellen MacArthur em parceria com a McKinsey mostrou que até 2050, se nada for feito, os oceanos podem ter mais plástico do que peixes, considerando que oito milhões de toneladas de plástico são despejadas anualmente nos oceanos — o equivalente a um caminhão de lixo por minuto.
De acordo com estimativa da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), das 460 milhões de toneladas de plástico produzidas em 2019 no planeta, menos de 10% foram recicladas. A maior parte foi despejada em aterros inadequados, queimada ou simplesmente descartada na natureza. E, na natureza, os oceanos são o ponto mais frequente de descarte.
Em relação a isso, estudo da Universidade de Newcastle mostrou que a poluição humana atinge até os pontos mais profundos do oceano. Ao coletar amostras de crustáceos em grandes profundidades, entre 7.000 e 10.000 metros abaixo da superfície, os investigadores encontraram grande concentração de produtos químicos.
O cenário é extremamente desafiador, mas o encaminhamento do comitê é, para Thais Vojvodic, responsável pela Rede dos Pactos dos Plásticos da Fundação Ellen MacArthur, uma sinalização importante de que o tema será tratado com mais seriedade daqui por diante.
Para ela, a questão da poluição plástica extrapola fronteiras, e portanto é crucial que um tratado internacional, com efeito jurídico, regule o setor – e, mais do que isso, que não se ocupe apenas de tratar dos resíduos, mas atente a todas as etapas da cadeia do plástico, do desenho das embalagens às possibilidades de reciclagem e reuso.
Confira a seguir a entrevista que Vojvodic concedeu a NetZero.
NETZERO: No início do mês, a Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente anunciou a futura criação de um Comitê Intergovernamental de Negociação para discutir a regulação do setor de plásticos no mundo, com efeito jurídico vinculante. Qual é a importância desse ato?
THAIS VOJVODIC: Esse é um marco importante. Para chegar a esse ponto houve muita mobilização prévia, de muitos atores, incluindo a sociedade civil, em organizações como a WWF [World Wide Fund for Nature] e a Fundação Ellen MacArthur, que fizeram manifestos para mostrar que existe apoio também no setor privado para isso.
A aprovação dessa moção significa que houve consenso entre todos os 175 países. Se qualquer Estado-membro discordasse, não haveria a aprovação. Então por si só esse é um momento muito importante, que demonstra que os argumentos que vêm sendo apresentados são muito válidos.
Que argumentos são esses?
O tema da poluição plástica extrapola as fronteiras, especialmente quando falamos de plástico nos oceanos, e hoje existe uma colcha de retalhos de regulações. Não há uma harmonização regulatória, por isso precisamos de um tratado legalmente vinculante.
Mas não é só isso: existem outros elementos relevantes, como a necessidade de falar sobre o ciclo de vida completo do plástico, e não só do plástico nos oceanos. No texto que agora será endereçado por esse comitê já se fala em economia circular. Como o plástico é desenhado, sua reciclabilidade, seu reúso, tudo isso tem que fazer parte do tratado, e não apenas o gerenciamento dos resíduos.
Outro ponto colocado como necessário é a relevância dos trabalhadores da economia informal nessa discussão – basicamente estamos falando dos catadores e das cooperativas de reciclagem. Faz parte do texto a integração, o reconhecimento de que eles têm que fazer parte desse tratado e que precisam estar presentes na discussão.
Eu ressaltaria estes três pontos: o tratado ser legalmente vinculante, falar de economia circular e ser inclusivo com os trabalhadores envolvidos.
Já sabemos como será composto esse comitê?
Por enquanto só temos uma data, que é a previsão de que o tratado seja finalizado até o final de 2024. Ainda não foi definido como será composto o comitê nem como deverá funcionar.
O que você acha que foi decisivo para que o consenso se formasse hoje, neste momento histórico?
Hoje existe, de fato, muito mais evidência do que havia antes sobre o tema. Estudos globais mostram que a quantidade de plástico nos oceanos quadruplicará até 2040 se continuarmos no “business as usual”, sem fazer nada. Não basta mais pensar em coletar resíduos plásticos, precisamos ter foco também na origem desse material.
Em 2018, ano de lançamento do compromisso global da Fundação Ellen MacArthur junto com a ONU, trouxemos o primeiro estudo global que mostrava que, se nada for feito até 2050, pode haver mais plástico do que peixes nos oceanos, em termos de peso total. Isso foi muito forte. A partir daí também cresceu a discussão e começaram a surgir muitas iniciativas voluntárias de empresas.
“Desde então percebemos que sim, existe uma evolução em relação a esse problema, mas que as ações voluntárias sozinhas não trarão respostas rápidas o suficiente diante do tamanho do problema. Precisamos ter uma complementaridade entre ações voluntárias e políticas públicas.”
Quais são os caminhos para mitigar a poluição por plástico no planeta?
O principal insight do nosso estudo é que a solução não é a reciclagem. A reciclagem é parte da solução. Estamos falando de repensar todo o portfólio das empresas, novos modelos de produção e entrega, como as embalagens poderiam ser reusadas muito antes de pensar em reciclagem.
Cada uma dessas soluções vai achatando a curva e podemos reduzir o impacto em até 80% até 2040. A gente já conhece essas soluções.
Vocês estão otimistas em relação ao anúncio de criação desse comitê?
Estamos encarando de forma muito otimista. Antes dessa aprovação estávamos muito sem saber… Tudo podia acontecer. Foi um primeiro passo muito importante, mas o nível de ambição do texto [o documento regulatório que será aprovado até o fim de 2024] conta muito.
No Brasil, quão avançada está essa discussão?
No Brasil temos a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que demorou 20 anos para ser aprovada, em vigor desde 2010. Na época da aprovação ela foi considerada muito moderna, porque ela é inclusiva, e isso reflete muito o contexto brasileiro, ao incluir cooperativas e catadores. Isso foi visto como inovador e copiado em outros países.
Mas a PNRS traz um aspecto de responsabilidade compartilhada no gerenciamento de resíduos e logística reversa. Isso significa que a responsabilidade de financiar a logística reversa deve ser compartilhada entre governo e iniciativa privada. Quando comparamos isso com o marco legal de outros países, estudos da Fundação Ellen MacArthur mostram que o tipo de regulação mais eficiente é a chamada Responsabilidade Estendida do Produtor, ou seja, quem deve subsidiar a logística reversa é quem coloca o produto no mercado.
“No Brasil, com a responsabilidade compartilhada, acontece um jogo de empurra.”
A Fundação Ellen MacArthur lançou há três anos um Compromisso Global por uma Nova Economia dos Plásticos. Como esse pacto funciona e quais são as metas das empresas signatárias?
Cerca de 50% da poluição plástica vem de embalagens plásticas, então a iniciativa de plásticos da Ellen foca em produtores de embalagens. O Compromisso Global, que tem 65 membros que juntos representam cerca de 20% de tudo o que é produzido em termos de embalagens plásticas no mundo, assumiram quatro metas até 2025. Essas metas são:
- o compromisso de eliminar dos seus portfólios todos os plásticos identificados como problemáticos ou desnecessários;
- elevar a quantidade de embalagens reutilizáveis no seu portfólio;
- ter, até 2025, 100% de embalagens reutilizáveis, recicláveis ou compostáveis – o que é desafiador, pois hoje esse número é de 65%;
- e chegar ao número de 25% de plástico reciclado sendo utilizado no seu portfólio.
Isso significa que, quando a marca desenvolver uma nova embalagem, 25% daquela embalagem deve ser proveniente de plástico reciclado, e não de plástico virgem. Essa é a meta mais avançada, e, se continuarmos no ritmo atual, vai ser cumprida.
Além dessas, temos uma quinta meta, adicional, que é uma consequência da economia circular. É a meta de redução da utilização de plástico virgem no geral. Cada empresa declara a quantidade de plástico que usa ano após ano, e estamos vendo uma redução do emprego de plástico virgem.
Qual o peso do fator econômico nisso? Usar plástico virgem ainda é mais barato do que trabalhar com reciclados?
De forma geral, existe essa tendência no início de qualquer transição. Normalmente, o plástico reciclado é mais caro porque essa cadeia de valor ainda não existe, precisa ser criada a infraestrutura, mas há países em que isso já não é assim porque o fluxo de reciclagem acontece de forma mais natural.
Nesse sentido, a Europa é a região mais avançada em termos de regulação das embalagens plásticas.
A Fundação Ellen MacArthur trabalha para disseminar o paradigma da economia circular. Poderia explicar melhor esse conceito?
“A melhor forma de explicar a economia circular é dizer que é uma alternativa à economia linear. Nossa economia inteira é linear: uma linha reta de extração, uso e descarte. Isso fomenta a economia extrativista, o que é um problema, pois estamos em um planeta de recursos finitos.”
A economia circular vai muito além do plástico: é uma alternativa pensada no sentido de que tudo o que usamos de material deve ser desenhado para continuar na economia. A gente está falando de reparação, como as roupas que podem ser consertadas em vez de descartadas, de reuso e de reciclagem. Essas são alternativas que fazem parte da economia circular, que sempre começa com redução, com a eliminação do que usamos sem precisar.
Depois disso, temos de olhar para o que não pode ser eliminado e inovar, pensar o que pode ser desenhado para ser reparado ou reutilizado.
O fato de ver isso refletido no tratado global sobre plásticos é a principal resposta de que existe um suporte de todos os setores em relação à economia circular.
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