“O poder que uma empresa tem para mobilizar seu capital humano para o voluntariado é enorme”, diz Silvia Naccache

Em sua terceira edição, a pesquisa “Voluntariado no Brasil”, feita em 2021, apontou que o voluntariado no país está mais individualizado. Em parte, isso é fruto do avanço das redes sociais, que permitem que o indivíduo busque por conta própria os mecanismos pelos quais pode exercer a prática.

O estudo faz parte de série histórica que traça o panorama de duas décadas de voluntariado no país e foi realizado em 2001 e 2011. O que chamou a atenção dos organizadores nos resultados do estudo mais recente é o avanço do voluntariado no país: o índice dos que declaram fazer ou já ter feito atividades voluntárias passou de 18% em 2001 para 56% no ano passado.

Mas surpreendente também é a mensuração do universo de brasileiros que exercem o voluntariado por meio de programas estruturados por empresas. São 15% dos 57 milhões de pessoas no Brasil comprometidas com atividades voluntárias. Esse resultado é fruto de uma cultura de sustentabilidade empresarial, que adota um conjunto de ações para incentivar seus quadros de funcionários a se engajar no trabalho voluntário.

“Não imaginei que esse número chegaria a tanto”, diz Silvia Naccache, coordenadora geral da pesquisa, que foi feita pelo Instituto Datafolha em parceria com o IDIS. “O poder que uma empresa tem para mobilizar esse capital humano em direção ao voluntariado é enorme.”

A pesquisa ouviu 2.086 pessoas no país e mostrou que o voluntário corporativo dedica, em média, 21 horas por mês a esse tipo de serviço, com periodicidade definida. Outros dados da pesquisa podem ser acessados no site, que reúne também artigos de especialistas sobre o tema.

Leia a seguir trechos da conversa de Silvia com NetZero.

NETZERO: Nós não vemos mais campanhas de incentivo ao voluntariado como havia há 20 anos e o tema parece não estar mais tão presente público. Por que mudanças o voluntário passou desde a primeira pesquisa, em 2001?

SILVIA NACCACHE: A pesquisa trouxe o inverso disso. Mostrou nos últimos 10 anos uma proatividade muito mais individual para a prática voluntária, e isso é reflexo de muita pesquisa no Google. Por outro lado, há um grande desconhecimento da legislação -e isso é um desafio para as organizações.

Os números dão um salto. Se considerarmos só quem faz ou já fez trabalho voluntário, passamos de 18% em 2001 para 56% em 2021. Além disso, a maior motivação para o voluntariado é a solidariedade; antes, havia muito o desejo de “mudar o mundo”.

As pessoas se reconhecem como solidárias, nesse movimento individual de voluntariado, mas ainda não veem o voluntariado como prática de cidadania. Trabalhamos 20 anos para isso, desde que o Betinho [o sociólogo Herbert de Souza] falava de cidadania contra a fome. Mas as pessoas ainda não reconhecem isso, ainda há muito a ser trabalhado apesar do salto enorme. Há também desconhecimento das plataformas facilitadoras para quem busca esse tipo de ação. Há uma seara rica de trabalho.

O que mais chamou a sua atenção nos resultados da pesquisa?

A pesquisa trouxe que são 48% dos respondentes são homens e 51% são mulheres –1% trouxe outra resposta. Isso não aconteceu nos anos anteriores. Isso quer dizer que as pessoas já se reconhecem e se posicionam como não estando em nenhum dos dois gêneros. É uma identidade de gênero em que se permite não se identificar como homem ou melhor.

Outro ponto é que em 2011 demos destaque para os jovens; agora, subiu um pouquinho a média de idade, que é de 43 anos. Além disso, 25% dos voluntários trabalham com população de rua, que é um grupo que sempre sofreu muito preconceito. É um salto de 11 pontos percentuais.

O aumento no atendimento à população de rua é um traço da pandemia?

É a pandemia e essa desigualdade escancarada, não dá para não ver. Acho que isso dialoga com a questão da solidariedade, porque o que se quer é ajudar o outro. O salto no número de pessoas que fazem voluntariado foi uma surpresa muito positiva. Então vemos como isso vai dialogando. É um retrato do que estamos vivendo.

Imaginamos que quem doa tempo ao outro é quem tem sobrando. Mas os dados mostram que, em sua maioria, são pessoas que trabalham muito, ganham até 2 salários mínimos, não têm as garantias de carteira assinada.

Em 2001, o destaque era para os aposentados. Agora vemos que a maior taxa é entre a população economicamente ativa.

Ao mesmo tempo, 15% dos que declaram que já fizeram ou fazem trabalho voluntário têm como intermediário a empresa a que estão vinculados. Essa taxa cresceu?

Exploramos o assunto neste ano [2021]. O Datafolha fez esse recorte para que pudéssemos comparar esse perfil com o perfil geral. Não imaginei que esse número chegaria a tanto. Dos que fazem trabalho voluntário, 15% deles atuam em projetos de voluntariado organizado pelas empresas. O poder que uma empresa tem para mobilizar esse capital humano em direção ao voluntariado é enorme. Se o voluntário reconhece que o seu engajamento veio por meio de uma empresa, é sinal de que é um serviço que está sendo muito bem-feito.

É óbvio que frequência e o engajamento são decorrência de programas mais estruturados. Mostra que esse potencial e seu papel social são enormes, e dialogam com a agenda ESG. Demonstra que a empresa conta com uma governança estruturada. Mostra também que a empresa tem um papel da empresa com a sua comunidade, e daí a escolha da causa da ação é a menos importante. E o ambiental entendemos que temos que cumprir e pronto.

E o que te causou frustração nos dados trazidos pela pesquisa?

A oito anos de uma agenda que tem que ser cumprida sobre os ODS, percebemos um desconhecimento muito grande. O resultado é um pouco menos ruim no empresarial. Claro, são 17 objetivos, não é fácil comunicar. Então, as pessoas acham muito relevante atuar nessas causas, como combate à pobreza, mas pouquíssimas têm ideia de que isso dialoga com uma agenda de governo.

Os dados também mostram que o voluntário acha que está fazendo o que pode, ao contrário do governo.

Ele traz para ele essa responsabilidade. O que me frustra é ele não ver isso como um papel cívico, num país democrático onde se pode participar de qualquer ação de voluntariado. Mas ele percebe seu poder de ação. Nos grupos focais, ouvimos frases como: “Eu organizei no meu condomínio”; “Eu decidi fazer no meu grupo da igreja”. Essa proatividade aparece bem destacada na pesquisa.

Nesses grupos, também apareceu o voluntariado empresarial, chancelou o que vimos na pesquisa. Apareceu muito a proatividade e o desconhecimento da lei. Foi um certo desapontamento porque o desconhecimento da lei, que é de 1998, não é um bom sinal. Supreendentemente, as pessoas não estão assinando o vínculo. É frustrante falar de direitos e deveres, códigos de conduta.

Você fez referência à questão da cidadania como motor do engajamento. Como isso mudou?

Entre os motivos que levam os respondentes ao trabalho voluntário, a resposta que se refere à prática da cidadania caiu de 17% em 2001 para 6% agora. “Melhorar o mundo” também recebeu menos respostas. Foi tudo para o “ser solidário”.

Como você vê o futuro do voluntariado no Brasil?

Os ventos estão favoráveis. Eu vejo um futuro com essa consciência de que somos protagonistas desse legado e que o voluntariado é uma ferramenta à disposição de qualquer pessoa, sem impedimento, com a ideia de que a ação é parte de uma prática cidadã.


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