Reciclando comida: como alimentos que seriam desperdiçados se transformam em bioativos para a indústria da beleza

Ter uma produção totalmente sustentável não é tarefa fácil. Quando se trata da indústria da beleza, alguns passos já foram dados: parte das marcas já se orgulha de não testar seus produtos em animais, dá preferência a ingredientes de origem vegetal, investe em embalagens à base de material reciclado e se preocupa com o pós-consumo.

Mas existe uma revolução em curso também dentro das embalagens. E se os ingredientes também fossem oriundos da reciclagem? E se, por exemplo, um xampu tivesse na composição alimentos reaproveitados? Esse cenário começa a se tornar cada vez mais palpável.

O que não vai parar no prato das pessoas pode ter uma segunda chance na indústria da beleza –ou mesmo na própria indústria de alimentos. Alimentos reciclados são a maneira mais fácil para qualquer pessoa evitar o desperdício de alimentos. Os produtos reciclados dão origem a produtos novos e de alta qualidade e são uma abordagem inovadora para o desperdício de alimentos, porque é altamente escalável e economicamente sustentável.

A IFF (International Flavors & Fragrances) é líder global na produção e fornecimento de ingredientes naturais para suplementos alimentares, alimentos funcionais e cosméticos. Por meio do investimento em biotecnologia, a empresa, listada no Índice de Sustentabilidade da Dow Jones, busca inovações que ajudem a reduzir o desperdício de alimentos no mundo, estimado em 30% pela ONU.

Em março deste ano, a empresa lançou 10 bioprodutos derivados da reciclagem de alimentos que, em condições normais, seriam desperdiçados pela indústria ou ainda na colheita. Entre eles estão o óleo essencial derivado de cascas de laranja que seriam descartadas de supermercados, bares de sucos e outros restaurantes na Holanda e o extrato das folhas da cúrcuma, que geralmente são incineradas após a colheita, e se tornam ingrediente para dar sabor picante e aroma amadeirado a alimentos processados.

Desta lista também fazem parte três bioativos derivados do processo de transformação da beterraba em açúcar voltados para a indústria de cuidados pessoais. Batizados de Genencare OSMS, eles obtiveram uma certificação da Upcycled Food Association (UFA). A IFF é uma das primeiras fornecedoras de ingredientes a receber da entidade a certificação upcycled na categoria de ativos cosméticos.

A mineira Deia Vilela, 52, mora na Argentina há 20 anos e é diretora da divisão Health & Biosciences da IFF para a América Latina. Filha de agricultores, Deia é formada em engenharia de alimentos pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), tem mestrado em marketing e hoje comanda uma equipe de biotecnologia.

“Os alimentos reciclados usam ingredientes que, de outra forma, não teriam ido para o consumo humano, são adquiridos e produzidos usando cadeias de suprimentos verificáveis ​​e têm um impacto positivo no meio ambiente.”

Parece complicado, mas Deia conta que o uso de alimentos reciclados está mais perto de nossa realidade do que pensamos. Como em nossos cosméticos, mas não só isso.

Ela cita um desses insumos obtidos de forma sustentável a partir de beterraba sacarina e reciclados, derivados da produção de açúcar. Na prática, esses ingredientes trazem benefícios para o usuário final como a hidratação e o fortalecimento da barreira para melhorar a elasticidade da pele.

“São produtos que fazem parte do nosso dia a dia. Uso, por exemplo, uma água micelar que adoro e que não só limpa a minha pele como hidrata. Esse foi um benefício muito bom para mim e que eu nunca tinha observado antes em produtos similares”, conta a executiva, que, há 26 anos atua na indústria alimentar.

Por motivos contratuais, a IFF não é autorizada a revelar nomes das marcas de cosméticos para as quais já vem fornecendo seus insumos, mas fato é que já dá para encontrar partes da beterraba sendo reutilizada em xampus, condicionadores, hidratantes, maquiagens, álcool em gel, entre outros, em farmácias e mercados do Brasil.

E a beterraba não é o único alimento reaproveitado. “Outras soluções de upcycling já existentes e são aplicáveis em cosméticos e perfumaria. Envolvem o reaproveitamento de subprodutos da cúrcuma na produção de extratos e óleos para fragrâncias”, conta a executiva.

Nos mercados americano e europeu, há diversos exemplos. A marca francesa Expanscience desenvolveu um princípio ativo para a região dos olhos formulado a partir de polifenóis retirados de abacates descartados pelo mercado no Peru, Já a Givaudan lançou há dois anos o Koffee’Up, um óleo de café premium elaborado com técnicas de upcycling a partir de grãos de café moídos de cafeterias na Dinamarca. A Cargill Beauty decidiu apostar globalmente na pectina extraída da casca do limão para a produção de cosméticos para a pele.

O CONSUMIDOR TEM PODER DE IMPULSIONAR ESSA TRANSFORMAÇÃO

O foco em sustentabilidade permeia a trajetória da IFF, mas, na indústria cosmética, o caminho para o upcycle de alimentos ainda é bem longo.

“O upcycle é muito mais popular na indústria da moda, mas essa consciência pode se disseminar com a mesma velocidade de conceitos como natural ou reciclado.”

Deia explica que, em geral, o consumidor tem noção mais clara da destinação de produtos finais para novos usos, não do aproveitamento de recursos normalmente seriam descartados ao longo das cadeias de produção.

Ou seja, quando falamos de reaproveitamento em cosméticos, a tendência é pensar, por exemplo, mais no descarte apropriado de embalagens e menos no reaproveitamento que é feito na produção daquele produto. Mas essa perspectiva vem mudando e os consumidores têm um papel crucial.

Estudos da Mintel indicam que 40% dos consumidores são propensos a utilizar produtos de beleza mais ecológicos e 47% concordam que produtos de beleza com certificação ética são mais confiáveis do que aqueles não certificados.

“No Brasil, 54% dos potenciais compradores de produtos verdes concordam que não gostam de desperdiçar. Ou seja, a sustentabilidade é um fator de influência cada vez mais importante para produtos de higiene pessoal e cosméticos.”

E o mercado muda com o movimento de quem consome. Nesse sentido, o cenário é promissor – ainda que caminhe a passos lentos. “A indústria de beleza se reinventa de acordo com as demandas do consumidor, e o brasileiro já está mais sensibilizado para a importância de um consumo mais consciente e sustentável e cobra isso das empresas.”

Para ela, cada vez mais, os consumidores buscam produtos minimalistas, com poucos itens na formulação, de origem natural, cosméticos em barra, com embalagens recicladas e o mínimo de plástico.

“O upcycling veio para ficar em um mundo sintonizado com ESG, economia circular e baixo carbono.”

Reciclagem, lembra a especialista, já é frequente hoje na cadeia de proteína animal. As enzimas, através do upcycling de subprodutos da indústria de proteína animal, como vísceras, penas e resto de couros, também permitem que resíduos se tornem um recurso para alimentação tanto animal como humana. “Trata-se de uma tecnologia disruptiva, de baixo investimento, que melhora custo e qualidade de produtos para o consumo”, conta Deia, que afirma que a iniciativa é boa para a indústria, o consumidor e o planeta.

CONSCIENTIZAR O CONSUMIDOR PARA ACELERAR O PROCESSO

Para acelerar o uso desses tipos de ingrediente em indústrias de alimentos ou de beleza, IFF e Deia apostam em detalhar como funciona o upcycling para as grandes empresas para quem fornecem insumos. A ideia é que, munidas de conhecimento, essas empresas levem a conversa até o consumidor. Um público mais informado e consciente aumenta sua demanda em relação às empresas e, assim, o upcycling tende a ganhar força.

“Fazemos questão de disponibilizar, em nossos canais, o máximo possível de informações sobre o upcycling. E prestamos todo o suporte possível para que nossos clientes levem aos consumidores finais as melhores explicações possíveis. É fundamental”, diz.

Hoje, bioativos reciclados correspondem em geral a uma pequena parcela da fórmula do cosmético. Dá para pensar em cosméticos que sejam 50% upcycled? “As marcas brasileiras têm metas bastante ambiciosas de sustentabilidade. Se a viabilidade comercial for avaliada, isso seria possível, principalmente se levarmos em consideração todos os elementos que envolvem um cosmético, como a embalagem”, diz ela.


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