Para a indústria de alimentos, trocar uma embalagem feita com resina plástica virgem por uma embalagem feita com plástico reciclado não se resume à simples troca de uma pela outra. São vários os fatores que precisam ser analisados para que esse processo funcione.
Na linha de produção, por exemplo, a gramatura diferente do plástico impacta em toda a programação de máquinas e pode reduzir a produtividade. Tem ainda o custo, em geral mais alto e, principalmente, a segurança alimentar, que é a garantia de que o alimento em contato com aquela embalagem pode ser consumido sem riscos para a saúde.
E foi em busca de uma embalagem 100% reciclada que a fábrica de sucos Natural One desenvolveu, junto com a Valgroup, uma embalagem feita com PET PCR (resina pós-consumo reciclada, ou seja, fabricada a partir do plástico já utilizado e descartado). Em dois anos, foram investidos R$ 2,4 milhões em pesquisa, desenvolvimento e ações de marketing.
Os primeiros produtos embalados nessa nova roupagem chegam às gôndolas em julho, mas o processo de desenvolvimento começou há pelo menos dois anos e resultou em um compromisso público da companhia de usar a nova embalagem em todo o portfólio da marca nos próximos cinco anos.
Hoje, a Natural One, fundada por Ricardo Ermírio de Moraes em 2015, tem uma capacidade produtiva de 220 mil toneladas por ano e produz 15 sabores de suco disponíveis em cinco tamanhos diferentes.
“Uma coisa é você falar que está preocupado, outra coisa é realmente fazer algo que tenha impacto, como estamos fazendo agora. Em cinco anos, podemos tirar 40 mil toneladas de plástico do mercado. É um impacto muito relevante. E sabemos que o consumidor, cada vez mais, vai olhar para isso. As marcas têm por obrigação assumir essa agenda”, diz Rafael Ivanisk, CEO da Natural One.
Na entrevista a seguir, ele fala sobre os desafios dessa jornada, que inclui levar os produtos em embalagens mais sustentáveis para o exterior.
NETZERO: Quando e como começou a ideia de trabalhar com PET reciclado pós-consumo?
RAFAEL IVANISK: A primeira coisa importante que fizemos foi assumir o plástico, porque, hoje, a melhor tecnologia disponível no mundo para fabricar sucos em termos nutricionais, de frescor e sabor é o PET asséptico. Só que tínhamos uma lição de casa, que era avançar na parte ambiental. E aí começou uma jornada na qual estamos há cinco anos.
O primeiro passo foi transformar as nossas embalagens em 100% recicláveis. A gente tinha alguns plásticos misturados no rótulo, tampa e na própria garrafa. Eliminamos isso, decidindo por uma matéria-prima mais pura. O segundo passo foi nos associar ao Eureciclo. Hoje, 30% das nossas embalagens são compensadas e a ideia é aumentar esse percentual gradativamente. O terceiro passo foi trocar o nosso rótulo e o lacre, que antes eram de plástico, por papel, que é biodegradável. O passo seguinte era avançar para a garrafa reciclada e agora chegou o momento.
Por que fazer isso?
“Temos consciência do problema do plástico. Hoje, a Natural One é a primeira empresa brasileira de sucos a usar embalagem com plástico 100% reciclado e acho que foi uma grande vitória e um grande exemplo. Realmente acreditamos que esse é o futuro da indústria de alimentos.”
É por isso que resolvemos fazer toda essa jornada sozinhos. Tivemos ajuda da Valgroup e algumas consultorias pontuais, mas foi o time de P&D da Natural One que colocou a mão na massa. A gente queria sofrer um pouco, no bom sentido da palavra, para aprender. Demoramos um pouco mais, mas hoje temos um nível de conhecimento e de segurança muito maior no que estamos fazendo. Queremos evoluir nesse aspecto no futuro e queremos ter esse conhecimento instalado dentro da companhia.
Qual foi o principal desafio que a Natural One teve para chegar na embalagem 100% reciclada?
O desenvolvimento do produto. Precisávamos encontrar a pré-forma (o primeiro formato da garrafa PET antes de ganhar a forma final. Em geral, se parece com um tubo de ensaio) ideal para o nosso produto, que é 100% natural, sem nenhum tipo de conservante. A tecnologia do PET asséptico que já usamos hoje nos permite não ter conservante nenhum e ainda ter um shelf life relativamente longo, de 8 meses.
Quando fomos para a resina reciclada, nossa preocupação era manter o mesmo nível de segurança alimentar e também o shelf life, que é importante para a logística. Precisávamos encontrar a dosagem certa de gramatura da pré-forma para cada embalagem e também a dosagem certa das proteções que usamos contra a entrada de raios ultravioleta e também de oxigênio. A nossa grande preocupação era a recontaminação dessa resina reciclada lá na gôndola do supermercado.
O que o plástico reciclado tem de diferente do plástico virgem?
As moléculas da resina reciclada são menos densas que as moléculas da resina virgem, então o oxigênio entra mais rápido. Por isso tem que ter uma gramatura maior e uma proteção UV maior para ter o mesmo desempenho de uma garrafa virgem. Então, demorou bastante tempo pra termos certeza absoluta que o risco era de 0%. Hoje, temos uma resina reciclada que tem zero risco de segurança alimentar comparada com a resina virgem.
Foi necessário fazer mudanças na linha de produção para usar essa embalagem?
Não. Hoje, da mesma forma que entra uma resina virgem na produção, entra a reciclada e não perdemos produtividade. Mas esse também foi um grande desafio. Temos uma linha de produção de alta velocidade e precisão. Na garrafa de 900ml, por exemplo, nossa linha fabrica 31 mil garrafas por hora. Então, se tiver algum milímetro de diferença em algum encaixe da pré-forma, a linha para porque tem risco de contaminação. A gente não queria perder eficiência fabril com a PET reciclada, então fomos fazendo várias adaptações e testes na linha. Com essa matéria-prima que desenvolvemos, são necessários ajustes na parte mecânica da linha, mas isso é automático. É como se estivesse trocando uma embalagem.
Essa tecnologia já existia?
A Valgroup já tinha desenvolvido essa resina PCR há muitos anos. O que fizemos foram algumas adaptações para o nosso produto na combinação de gramatura com as proteções.
Em geral, embalagens recicladas são mais caras do que as virgens. Isso aconteceu com a Natural One?
Na época em que começamos o estudo, há dois anos e meio, a resina reciclada era na casa de 20% mais cara do que a resina virgem. Como queríamos fazer, assumimos que teríamos que reduzir custos em outros lugares, mas nisso a gente não ia economizar e ia ter uma resina reciclada.
“Nos últimos 8 meses está acontecendo uma coisa muito outlier no mercado, que é a resina reciclada estar mais barata do que a resina virgem. Isso nunca aconteceu na história. Por conta dos aumentos na cadeia de custos global e como a resina é um commodity e também acompanha o mercado externo, o preço da resina virgem dobrou nos últimos dois anos.”
Não acredito que isso vai ser uma verdade para o futuro e o preço da resina virgem deve cair e ficar mais baixo do que a resina reciclada. Mas a distância que exista antes vai ser muito menor, o que facilita para toda a cadeia produtiva.
Esse custo vai impactar no preço final do produto que a Natural One vai colocar no mercado?
Neste momento não, porque a resina reciclada está até mais barata do que a resina virgem. E a gente não quer aumentar o preço por isso. Não entendemos que isso é motivo para cobrar mais do consumidor. É uma obrigação da indústria com o meio ambiente, e o consumidor não tem que pagar por isso. Estamos fazendo porque realmente acreditamos no valor dessa mudança para a sociedade e, obviamente, queremos que o consumidor reconheça o nosso esforço através do nosso market share. Queremos que ele escolha o nosso produto em vez de escolher o concorrente.
Foi necessário algum tipo de aprovação de órgãos reguladores, como a Anvisa, para colocar essa embalagem em circulação?
Sim. Os órgãos reguladores são bastante exigentes nessa história, como tem que ser. Tivemos inúmeras reuniões, validações e testes com a Anvisa. Para cada embalagem temos que ter uma autorização diferente. Hoje, temos autorização para garrafa de 1,5 litro e de 2 litros. Nosso portfólio tem cinco tipos de embalagem: 180 ml, 300 ml, 900 ml, 1,5 litros e 2 litros. Agora, estamos no processo de aprovação das outras embalagens e também construindo com a Valgroup um sourcing para que eles nos atendam em cinco anos na totalidade do nosso volume.
E essa embalagem reciclada também vai ser usada na exportação?
“Nosso sonho é criar uma marca de suco brasileira internacional. E sabemos que lá fora, em mercados mais competitivos, essa é uma agenda que avança bastante.”
O primeiro país em que vamos colocar a garrafa reciclada é o Canadá, onde deve entrar daqui há dois meses com os 3 sabores que vendemos por lá: manga, goiaba e laranja. O Canadá é um mercado super desenvolvido para a categoria de suco e ainda não tem nenhuma marca que tenha pet 100% reciclado, então vai ser um dos nossos grandes diferenciais competitivos lá, onde o consumidor é mais exigente e acostumado com essa agenda ambiental.
A embalagem reciclada foi desenvolvida em parceria com a Valgroup. Quem é o dono dessa tecnologia hoje? Outras empresas podem usá-la?
A tecnologia foi desenvolvida pela Valgroup e está disponível. Qualquer um pode ter acesso, se quiser. A única coisa que fizemos, e qualquer indústria alimentícia vai ter que fazer, é alguma adaptação para o seu tipo de produto. Marcas de suco que usam conservantes, por exemplo, talvez usem uma receita menos protegida do que a nossa, com um custo um pouco menor.
Qual a vantagem que você enxerga no fato de terem sido pioneiros na indústria do suco?
Muita gente fica com medo de contaminação, de ter uma cadeia mais cara e queremos provar que é possível. Tomara que nosso exemplo seja bem-visto pelos nossos concorrentes e outras marcas de bebidas. Queremos ser um exemplo positivo nessa indústria, assim como Guaraná Antártica foi exemplo para refrigerantes lá atrás, quando lançaram a primeira garrafa de refrigerante reciclada. Queremos ser um exemplo pra categoria de sucos de que é possível fazer.
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