Depois de subir ao palco de um evento de sustentabilidade em que defendeu a aproximação entre empresas e ONGs em busca da geração de impacto social, Daniela Garcia foi abordada por Hugo Bethlem. O ano era 2017 e a visão de mundo de Daniela chamou a atenção do cofundador do Instituto Capitalismo Consciente Brasil.
Jornalista de formação e publicitária por experiência, como gosta de explicar, Daniela se tornou especialista na construção de narrativas de marca no mundo digital. Ela conta que acompanhou todo o nascimento e desenvolvimento da internet no Brasil, em meados dos anos 1990, e entendeu rápido o potencial que aquela transformação em curso poderia ter sobre os negócios. Então vieram as redes sociais e era preciso saber se posicionar.
“Eu sempre fiquei muito indignada com o jeito pequeno como as empresas se colocavam em termos de comunicação. Quem me conhece há bastante tempo sabe que sempre tive o desejo de que as empresas se posicionassem para o bem, contassem mais para os consumidores o que fazem para além do seu produto”, lembra.
Depois de trabalhar para grandes agencias de publicidade no país, o que incluía celebridades e a construção de protocolos de atendimento digital para empresas como Motorola e Latam, Daniela se voltou para ajudar empreendedores e ONGs a construírem sua reputação digital.
Um desses trabalhos permitiu uma união entre a ONG Banco de Alimentos e a marca de vestuário Reserva, para tangibilizar a doação de pratos de comida a quem passa fome. Isso a levou ao palco do evento que a trouxe hoje para um novo desafio: desde março, ela lidera no Brasil o Instituto Capitalismo Consciente, um movimento global voltado para estimular a consciência das lideranças para práticas empresariais baseadas na geração de valor para todos os stakeholders. Lembrou de ESG?
“Viemos antes de ESG, antes de ODS, antes de Sistema B, porque a gente fala da consciência da liderança”, diz ela. E é preciso antes estar consciente para que a adoção de novas práticas aconteça. “Nosso propósito é transformar o jeito de fazer investimento e negócios no Brasil.”
Leia a seguir os principais trechos da conversa de NetZero com Daniela sobre seu trabalho à frente de 4.000 associados em busca de maior valor compartilhado.
NETZERO: Você foi eleita em março para liderar o movimento Capitalismo Consciente no Brasil com a missão de expandir a transformação proposta pelo instituto. Como funciona? Os associados recebem algum tipo de certificação?
DANIELA GARCIA: Não somos uma entidade certificadora porque não acreditamos que seja possível certificar a consciência de um CNPJ. Acreditamos na consciência da liderança – e quanto mais consciente e mais “overmind” ela for, mais noção tem do impacto que está gerando. Então somos uma entidade que acredita no protagonismo das empresas para diminuir desigualdades que existem no Brasil.
Nosso propósito é transformar o jeito de fazer investimento e negócios no Brasil. E a palavra investimento está nisso porque tem a ver com quem investe, o dono do dinheiro tem que ter um olhar para o impacto. E negócios está ali porque o CEO também precisa entender como fazer negócios que tenham impacto. Viemos antes de ESG, antes de ODS, antes de Sistema B, porque a gente fala da consciência da liderança sobre o impacto que ela pode gerar.
Temos uma bandeira aqui que é pelo ODS zero, o ODS da consciência, que faz com que as pessoas primeiro se conscientizem das urgências e depois escolham uma para trabalhar.
As empresas precisam assumir novos papéis na sociedade?
É um novo contrato social. Minouche Shafik fala disso no livro dela [Cuidar Uns dos Outros: Um Novo Contrato Social, da Intrínseca]. Nós acreditamos que uma empresa é capitalista consciente quando acredita em um propósito maior e entende o motivo pela qual existe. Além disso, tem um líder consciente, que levanta a bandeira por esse propósito, personifica isso em suas ações, é orientado para stakeholders ao entender que é parte de um sistema e, mais do que isso, trata seus stakeholders de forma equânime –com a mesma importância, mas não do mesmo jeito. E, além disso, tem uma cultura consciente que alicerça tudo. Isso passa por olhar para pessoas e para o planeta sempre gerando impacto. Então, estamos aqui para inspirar e educar lideranças.
Você acredita que vivemos esse momento da construção de um novo contrato social?
Precisamos de novas mentalidades para esse contrato acontecer. Primeiro você tem que ter a mentalidade de que é absolutamente necessária a mudança, um olhar para a urgência. Essa visão não dá mais para não ter, mas ela tem que alcançar a todos. O que a gente precisa hoje é levar consciência para todo mundo. O que a gente prega é que é chegada a hora do capitalismo consciente para todas as empresas e todas as pessoas.
ESG também é para pessoa física, que precisa ter governança sobre sua própria documentação – 25% da população não tinha CPF válido no início da pandemia. O brasileiro não está se enxergando como pertencente a uma sociedade, e a gente precisa ajudar as pessoas a ter governança sobre a própria vida.
O capitalismo consciente não deve ser entendido como uma forma de gestão de empresa grande, todas precisam estar nos parâmetros ESG. A pequena e a média serão fornecedoras e precisam ser vistas como aptas. Vamos parar de achar que estamos falando só com a elite das empresas, eu quero falar para todos. Eu quero falar para o microempresariado, que é a maioria das empresas do país e emprega mais de 46% da população.
Como fazer isso?
Com mais comunicação e maior aproximação de hubs que falem com microempreendedores, parcerias como com o Sebrae e com entidades setoriais de toda natureza. Vamos criar dentro do instituto produtos e jornadas de conteúdo que tenham muita aproximação com as necessidades e desafios desse empreendedor. Tudo o que a gente puder fazer, vamos fazer.
Hoje, qual a parcela de micro e pequenos empreendedores dentro desse grupo de 4.000 associados?
Dados de pessoa física nós não sabemos, mas entre as 180 empresas associadas, temos quase 70 startups. Então eu tenho uma camada grande de empresas pequenas, que já nascem reconhecidas com os pilares ESG, orientadas para impacto, mesmo que não sejam negócios que prevejam impacto em sua atividade. O meu maior desafio está nas grandes. Por mais legais que elas sejam, elas dão menos atenção a mim porque supostamente já fazem bem o que fazem. Mas eu gostaria de tê-la por perto para mostrar o exemplo.
ESG se tornou um tema onipresente nas questões empresariais nos últimos anos. O trabalho de atrair e convencer essas empresas rumo a um olhar mais consciente tem se tornado mais fácil?
A pandemia ajudou muito. Porque as empresas tiveram imediatamente a concretude de que fazemos parte de um sistema integrado. Não teve empresa que não se perguntou o que fazer com os colaboradores ou com a cadeia de fornecimento. Quando ela parou e analisou como manter um fornecedor vivo, ela pode ter se dado conta pela primeira vez das enormes correlação e interrelação que existem entre todos eles. E na hora em que acontece isso, o mundo descobre que olhar para stakeholder e cuidar, ser ético e transparente, é ser capitalista consciente.
Onde as empresas ainda erram? O que ainda não está funcionando nessa direção?
Tudo parte de uma consciência de liderança. Tudo gera impacto, seja negativo ou positivo, não existe impacto neutro. Sua omissão gera algum impacto. Se o líder não sabe o que faz, ele deveria ter consciência daquilo que ele poderia fazer. Cabe a quem está ao redor dele gerar consciência para a transformação. Capitalismo consciente não acontece de baixo para cima, precisa ser de cima para baixo. Porque tem que partir do líder. Precisamos de líderes que motivem os outros a se mobilizarem. Ações podem ser amplificadas. É a célebre frase: palavras movem, exemplos arrastam.
Precisamos de coragem para entender nossas deficiências e para buscar novos conteúdos para que possamos melhorar. Nisso, a diversidade e a inclusão estão indicando cada vez mais que multiplicidade de visões multiplica a criatividade.
Um dos projetos que você quer desenvolver é o pilar de advocacy para desigualdade velada. É um tema relevante, mas pouco discutido. Como você pretende trabalhar?
Esse é um tema muito importante para nós e estamos trabalhando aos pouquinhos porque precisamos acertar o tom do advocacy. Não somos um movimento ativista, estamos em ano eleitoral, e temos no nosso nome a palavra capitalismo, que muitas vezes é confundida com partido político. Não se trata disso. Tenho pela frente um trabalho importante de seleção de exemplos dessas desigualdades para poder falar. Por exemplo: diferença salarial nas empresas. É preciso estudar, não basta citar. Um comitê está analisando dados para lançarmos no fim do ano, depois desse estudo.
Mas qual foi sua motivação para isso?
Muitas vezes a gente mostra as boas práticas, mas às vezes é preciso mostrar pelo lado ruim. Então não dá para abordar gap salarial falando: você sabia que tem empresa que tem um gap de 14.000% entre os salários do CEO e o chão de fábrica? Exemplos ruins precisam ser selecionados com pinça.
Há um texto em nosso blog que é quase uma prévia, se chama Desequilíbrio financeiro. Falamos da motivação do setor de saúde para pedir à ANS para anular determinados atendimentos do rol de procedimentos. Fomos analisar e a motivação era “desequilíbrio financeiro das empresas de saúde”. Mas como desequilíbrio financeiro, se no final das contas estão dando lucro? O nosso texto diz isso: será que esse dinheiro vai chegar na ponta final e ser redistribuído entre todos os colaboradores? Ou é um desequilíbrio em que o shareholder ganha menos? Então eu posso desequilibrar a conta de uma família fazendo com que um pai peça empréstimo para pagar o tratamento de um filho mas não posso desequilibrar a conta de uma operadora de saúde que vai distribuir lucro menor ao sócio? É por aí que a gente vai.
É um tema tabu para o capitalismo.
Exato. O que queremos fazer é um advocacy indireto, que não é para gerar política pública, mas é um alerta.
Em março, você se tornou a primeira mulher eleita para liderar uma unidade nacional do movimento no mundo. Como isso pode ser uma inspiração para as empresas associadas?
Estou aqui desde 2017 e acompanhei essas mudanças.. Antes, o cargo de CEO era voluntário, agora existe uma seleção e eu fui escolhida. É inspirador porque mostra que temos que dar espaço para diversos pontos de vista, e mostramos que cumprimos o que pregamos. Os associados ficaram muito felizes porque sabem a veemência com a qual eu me posiciono. Para o meu ecossistema, foi uma decisão muito bem-aceita. E para mim, além da honra de sentar nessa cadeira, é uma responsabilidade enorme. Eu trabalhei para estar aqui.
Queria por fim falar sobre essas duas palavras que guiam a instituição, capitalismo consciente. Como explicar o termo para quem não sabe ao certo do que se trata?
É simples. Capitalismo é um modelo econômico nascido há séculos cuja base foi criada para dar liberdade à produção, e a partir dela gerar riqueza. Ele, em sua essência, é baseado em liberdade, liberdade de produção e geração de riqueza para todos. O capitalismo consciente resgata isso. Resgata a circulação da riqueza entre todos, porque afinal as pessoas precisam se sentir inseridas no sistema social e econômico, que são parte da economia, porque isso é fundamental para elas se sintam participantes.
O capitalismo continua sendo o melhor modelo econômico do planeta. Quanto de progresso ele nos proporcionou nos últimos séculos? Se olharmos para os números de 200 anos atrás, veja o avanço em analfabetismo, expectativa de vida, temos hoje saltos enormes de tecnologia. Ele se desconectou foi da essência do ser humano, esmagando pessoas para geração de riqueza para uma única, esgotando os recursos planetários.
A correção de rota do capitalismo passa por entender que ele tem que cuidar de pessoas, preservar o planeta, mas mais do que isso, tem que fazer circular riqueza. Não tem coisa mais grata do que estarmos todos no mesmo sistema, com oportunidade de ter liberdade de produção e gerar sua própria riqueza. É isso que a gente quer resgatar.
E entendemos que o grande protagonista hoje é a iniciativa privada, na sua calibragem das ações internas, de relações com o mundo externo e de sua abertura de oportunidade para todos. A grande desigualdade não é a de gênero, é a desigualdade de oportunidade.
A gente tem a maior taxa de desemprego entre jovens do G20. Temos que colocar os jovens dentro das empresas. Todo mundo que está incluído fica mais feliz. Isso gera sensação de pertencimento à sociedade e o brasileiro precisa muito disso, precisa entender que o metrô é dele, a pracinha é dele, não é do governo. Ele é o governo. É uma mudança para o compartilhamento, para o igualitarismo, para a circularidade.
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