O Brasil é conhecido pelo seu enorme potencial para a energia de fontes renováveis – e isso faz com que esteja na liderança da transição energética entre os países dos BRICS (grupo que reúne Brasil, Índia, Rússia, China e África do Sul), uma vez que a matriz energética limpa brasileira tem uma participação de 45% na geração de eletricidade, enquanto outros integrantes do bloco dependem maciçamente de carvão e outros combustíveis fósseis para fabricar energia.
Contudo, a tecnologia passa a ser um fator decisivo na transição energética em curso no mundo, que busca a diminuição de emissões de carbono em todos os setores possíveis, seja na geração de energia, seja na indústria como um todo até chegar a bens de consumo, como automóveis, por exemplo. Apenas a bênção da natureza não será suficiente para assegurar uma posição de liderança no campo.
É o que defende o professor Luciano Losekann, da UFF (Universidade Federal Fluminense), coordenador do Grupo de Energia e Regulação da Faculdade de Economia na instituição. Segundo ele, o Brasil tem enorme vantagem competitiva, considerando a viabilidade hidrelétrica, e por estar em desenvolvimento de um mercado de energia solar e eólica, neste último caso, inclusive com tecnologia própria, o que diminui a dependência de importação de equipamentos.
Losekann, colaborador do Ipea (Instituto de Pesquisas e Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério da Economia, acompanha o mercado de energias renováveis e participou da elaboração do estudo “Transição Energética e Potencial de Cooperação nos Brics em Energias Renováveis e Gás Natural”, publicado em 2021.
Em conversa com NetZero, o especialista analisou a trajetória do país no mercado de energia limpa até agora, avaliou o estágio nacional em relação aos vizinhos do Mercosul, em especial o Chile, e ainda explicou por que países que poluem mais ainda assim atraem mais investimentos do que o Brasil.
NETZERO: O Brasil está aproveitando bem o potencial que tem para produção de energia limpa?
Luciano Losekann: Vamos pensar em tendências. Nesse contexto, o Brasil é dotado de uma abundância de recursos que vai até além dos renováveis. A disponibilidade de escolhas na matriz energética são imensas. Quando a gente compara o Brasil a outros países, a matriz brasileira é amplamente baseada em fontes limpas. Nessa comparação com os BRICS, a lição é de que a transição energética está em movimento, e mesmo países que demoraram a se engajar nesse movimento se engajaram mais recentemente, a partir do Acordo de Paris (2015), que foi um divisor. Mas a transição energética não é única, temos situações distintas. Na comparação dos BRICS vemos que os pontos de partida são diferentes. O Brasil tem uma situação privilegiada, enquanto outros têm uma participação brutal de [combustíveis] fósseis, principalmente carvão, como China, Índia e África do Sul. Os objetivos também são diferentes, dependendo do país temos demandas e objetivos distintos.
Nos países em fase inicial de desenvolvimento energético, o desafio ainda é oferecer energia moderna à população, como a Índia, com pobreza energética bem significativa. Diferentemente de países com uma matriz consolidada e recursos para ter um pioneirismo na transição.
Por último, os mecanismos são distintos, e nas políticas energéticas dessa transição temos um menu de opções e não observamos uma escolha única. O Brasil se beneficiou dessa disponibilidade de fontes. Isso é bom pontual, pois nos movimentos mais recentes, como o leilão das térmicas da Eletrobras, com certeza essa opção coloca um pouco em xeque a trajetória de fusão de energias limpas. Mas, se pegarmos o todo da trajetória de desenvolvimento, podemos considerar que o país está em uma situação bastante favorável na descarbonização.
Quanto as fontes de energia verde do Brasil, hoje em 45% do total, podem ser ampliadas?
O grande desafio é que, até aqui, o que determinou essa posição favorável do Brasil na matriz energética são fontes que se esgotaram – a geração hidrelétrica, com limite de disponibilidade e aproveitamento. Então a trajetória do passado de energia elétrica barata já não é uma verdade.
A questão ambiental se junta aos custos para restringir as hidrelétricas. Por outro lado, temos nos transportes a participação de biocombustíveis. São duas condições que são uma vantagem, mas o desafio para o futuro estará ligado a outras tecnologias – as renováveis como eólica e solar, e na parte de biocombustíveis os chamados avançados, etanol de segunda geração, e também hidrogênio.
Essa posição nos coloca com uma vantagem para o próximo passo [da transição energética mundial]. Por exemplo, difundir a solar e eólica. O Brasil tem recursos favoráveis principalmente para geração de energia de fonte eólica, e além disso temos os reservatórios hidrelétricos que são uma fonte de complementação que dão vantagem para uma integração dessas energias, algo que foi um desafio para países com bases térmicas de geração.
Na parte de biocombustíveis, tendo a matéria-prima desenvolvida aqui, seguir para tecnologias mais avançadas também é um caminho que o Brasil tem uma vantagem. Mas tem desafios como capacitação tecnológica, atração de investidores, o que não é uma coisa garantida, pois é um mercado com bastante incerteza. Então, o desenho de uma política para fomentar este segunda etapa da transição é muito importante nos dois casos.
Por que países mais poluidores, como China e EUA, aparecem como mais atrativos para investimentos neste setor em rankings de consultorias?
Acho que vai a um cenário além da energia. O investimento no Brasil associa-se aos riscos do Brasil como um todo. Na área energética, o quadro brasileiro é ruim para investimentos mais atrativos.
Estamos em uma situação política e institucional que não é atrativa para a economia.
Em qualquer ranking os Estados Unidos vão ficar à frente do Brasil, é um mercado maior, mais estável. O Brasil agrega riscos a projetos que não ocorrem no caso norte-americano. Mas, se você pegar o último ano de eólica no mundo, em 2021, o Brasil foi o terceiro país que mais agregou capacidade eólica. Em solar também temos potencial de liderança, então tem mercado. Depende sempre da forma de comparação. Realmente China e EUA terão números mais significativos do que o caso brasileiro, mas a trajetória comparada a países semelhantes, como no caso dos BRICS, o país está em posição vantajosa, mas de fato não quer dizer que é um lugar garantido.
Há vários desafios na parte de tecnologia. Em eólica, o Brasil atraiu fornecedores e desenvolveu locais como a WEG, mas na solar o Brasil ainda importa; o boom de instalações acarretou uma explosão de importação, então nem tudo são flores. Mas é inegável que sejamos considerados uma trajetória de sucesso na difusão de renováveis.
Que cartas o país tem na manga para se projetar no mercado internacional?
Acho que a grande vantagem brasileira são os recursos. A gente tem o exemplo da produção eólica, que temos um fator de utilização sem similares no mundo inteiro, o que dá competitividade. Temos também vantagens de insolação no caso da energia solar. Uma indústria de fornecimento madura, algo que vem dando certo recentemente, mas também a indústria de equipamentos para transmissão de energia, que talvez outros países com condições semelhantes não dispõem dessa situação.
Se pegarmos os projetos de hidrogênio, por exemplo, eles viabilizam a exploração desses recursos em termos de comércio. É um projeto que pode ser voltado à exportação a partir de fontes renováveis e o país está em uma boa situação, com projetos integrados que utilizam os recursos brasileiros e que terão vantagens com esta disponibilidade.
Olhando para o mercado nacional, qual a sua avaliação? Nota-se um avanço nos campos de energia eólica e solar.
É muito positivo. Temos uma nova dinâmica com o mercado livre [capital privado], que historicamente não contribuía para a expansão [das energias renováveis] e ultimamente deu um fôlego para a energia solar e eólica. O boom recente agregou esse mercado a projetos especializados, mas não é possível saber até quando. É uma janela de oportunidade com vantagens que estão valendo a pena.
Quando a gente nota no Plano Decenal de Expansão de Energia, a perspectiva é de forte desenvolvimento eólico e solar. O planejamento brasileiro aposta nestas duas alternativas. Ainda assim a gente tem algumas exceções, certamente as termelétricas impostas pelo apoio à privatização da Eletrobras tiram mercado para fontes renováveis, mas mesmo assim, a perspectiva é bastante positiva quando olhamos para o planejamento.
Como devemos olhar para nossos parceiros do Mercosul?
Em termos de integração dos mercados é uma trajetória que foi interrompida por razões geopolíticas e até de instabilidade de crescimento. A integração mais robusta com os países do Mercosul não deu o resultado que seria possível. O Chile é um porto seguro para investimentos e tem uma vantagem de insolação, com índices de radiação entre os melhores do mundo, e por isso também essa aposta em hidrogênio. O potencial de cooperação é bastante significativo, ainda que a integração energética não avance. Se a gente pensar, a integração regrediu. o papel da Bolívia, com reservas de gás natural que não se mostraram confiáveis, e a Argentina, com linhas de conexão que não são utilizadas, percebe-se uma integração que não aconteceu.
Acho que passa por uma escolha. Os países estão se posicionando e há uma concorrência por projetos, mas penso que a tendência é ter espaço para todos. Há uma multiplicidade de projetos no Brasil. É um cenário com muitas incertezas tecnológicas para transformar esse potencial em mercado mesmo, com investimento maciço, e não é algo garantido.
As perspectivas de projetos com hidrogênio verde no Brasil são favoráveis, mas também para o Chile. Não é uma questão de um ganhar e o outro perder. Os dois ganham. O Chile é uma aposta, mas certamente o Brasil também é. A questão do hidrogênio, o que deve preocupar não é competir com o Chile, mas o Brasil desenvolver seu mercado, a trajetória de custos, o desenvolvimento de equipamentos e matéria-prima, à frente dessa concorrência.
Quais as condições para o Brasil expandir suas opções de energia renovável, como hidrogênio e gás natural?
Na Alemanha, o hidrogênio verde surge como aposta para fugir da dependência do gás russo. Mas os riscos de se apostar apenas nessa alternativa podem ser limitantes, pensando na matéria-prima, como o níquel, que acabam sendo concentradas em países como Rússia e China. É algo que se estende ao nosso contexto.
É todo um segmento que se tenta dar uma racionalidade que hoje não existe, com essas questões de custo e materiais. No caso do gás natural, a Rússia aposta em uma transição diferente, onde a descarbonização seria obtida com tecnologias que não são a solar e eólica, é uma aposta em gás natural e energia nuclear. Mas com a invasão da Ucrânia isso se modifica.
No Brasil, a gente tem um papel grande para o gás natural. As reservas do pré-sal podem dar uma reviravolta. Temos outras possibilidades onshore e em lugares não convencionais. É claro que no Brasil o papel do gás natural é diferente do que em outros lugares do mundo, mas há muito espaço para o gás natural crescer.
Como a iniciativa privada e o poder público devem dialogar para impulsionar o parque energético verde do país?
Penso que o Brasil tem uma trajetória que está se desenvolvendo, fornecedores que estão investindo, mas temos mais a agregar. A liderança de programas mais ousados para a produção de energia verde são uma oportunidade única brasileira. Nos debates [eleitorais], por exemplo, vemos o pessoal falar de hidrogênio, de eólicas, mas na verdade hoje colhemos êxito do passado.
O segundo passo, de ter uma tecnologia para ampliar a participação de solar e eólica, carece de uma liderança puxada por programas de governo. Mesmo na questão da eólica, que teve o BNDES como ator importante, vemos um esvaziamento do papel do banco recentemente. Há uma chance de engajamento do BNDES e de outros atores da vida pública, pois perder uma oportunidade significa ficar fora do mercado.
Tratamos aqui dos projetos do Chile, por exemplo. É preciso condições de criar um ambiente favorável para o desenvolvimento da tecnologia no Brasil, trazendo parceiros internacionais, e valorizar os nossos recursos com um esforço público de políticas para colocar isso à frente da pauta, e a iniciativa privada é quem vai tocar [os projetos].
Quando a gente olha para China e Índia, que são países que atrasaram um pouco a aposta em renováveis, hoje eles já lideram em investimento. Dez anos atrás, a energia solar era uma coisa europeia, e os dados recentes mostram que é um movimento com engajamento global, e a China com liderança, com mais de 30% da capacidade instalada solar do mundo, assim como uma fatia semelhante em energia eólica. O quadro mudou e os países antes retardatários hoje lideram. Por isso a transição energética é um movimento em curso, consolidado.
*este conteúdo faz parte do Especial “Transição Energética”, promovido durante o mês de outubro de 2022 por NetZero, com o patrocínio da Melhoramentos.
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