Numa conversa recente com meu amigo Marcel Kampman, um cara sempre inspirador, ele me contou que, além das viagens em família, coisa que busca fazer com frequência, gosta de programar saídas exclusivas com a filha adolescente, ou então só com o filho, dois anos mais novo.
Marcel disse que são momentos importantes para descobrir “quem” é aquela pessoa, muito além do “que” é aquela pessoa. E explicou: você é pai, mãe, filho, filha, marido, mulher. Isso é o “que” você é. O crachá pendurado em seu pescoço.
Já “quem” você é se refere à pessoa por trás do crachá. Não se trata do papel que você desempenha em família, mas quem você é de verdade, como indivíduo, despido da persona que você assumiu naquele ambiente.
Eu achei essa ideia provocante. Sou pai desde 2005. Abracei com gosto essa função. De modo amplo, profundo e eterno – porque nunca mais deixarei de ser pai, aconteça o que acontecer.
Eu gosto de ser pai. Tento ser um bom pai. Essa condição me mudou para melhor. Acabei, em boa medida, me transformando nesse personagem que escolhi interpretar. Essa persona, muito mais do que apenas uma insígnia ou um uniforme, alterou de modo estrutural minha própria identidade.
No entanto, existe um “quem” atrás do “quê”. O papel de pai me influenciou e me modificou. Mas ele não me define completamente. Esse outro eu, ou melhor dizendo, esses outros territórios que compõem aquilo que sou, existiam antes e continuam existindo em mim
Muitas vezes a gente se esquece disso. Tenta abrir mão disso. Como se para desempenhar melhor seu papel de mãe ou de pai você precisasse abrir mão de todo o resto. Isso significa perder-se um pouco de si mesmo, negar-se um tanto.
Em consequência, acabamos escondendo nossa versão completa dos outros também. A gente mesmo já não sabe “quem” é sem o crachá de pai ou de mãe, ou de esposo ou esposa (não existe termo mais arcaica na língua portuguesa). E nossos companheiros e filhos também não tem a menor ideia das pessoas que somos de verdade, na íntegra, por trás do papel que nos dedicamos a desempenhar.
Por isso a ideia de Marcel é tão bacana.
De vez em quando, uma vez por ano que seja, que tal sair do ambiente da família, institucionalizado, imbricado por anos de afagos e rusgas, e pegar um filho por vez, e deixar os crachás guardados numa gaveta em casa, e tentar descobrir quem é aquela pessoa – na sua essência?
Não é simples. Sair dos papeis que construíram aquela relação – e que lhe definem, e que moldaram as lentes pelas quais você enxerga o outro. E conversar sem hierarquias, sem dívidas, sem culpas, arquivando por alguns dias o longo histórico de alegrias e discordâncias, de expectativas e frustrações, de alinhamentos e afastamentos, que lhes trouxe aqui, de modo a poder se surpreender com aquela pessoa à sua frente, com quem ela é de verdade.
Que tal saber quem é o seu filho ou a sua filha quando eles estão longe de você, sem o boné que você ajudou a bordar para eles usarem em família? Que tal descobrir o que deseja sua mulher ou seu marido, ou o que lhes dói, ou o que lhes faz sorrir de modo genuíno, depois que cumpriram todas as tarefas da casa e, por um minuto, ousam colocar a si mesmos como itens prioritários em suas próprias vidas?
É assustador. Viva. Vamos nessa.
(Este artigo também pode ser lido no Projeto Draft).
**Adriano Silva, 52, é jornalista, fundador da The Factory e publisher do Projeto Draft, do Future Health e de Net Zero. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
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