Embora já seja consensual no meio científico a necessidade de se conter as emissões de gases de efeito estuda para limitar o aquecimento global, os esforços até aqui empreendidos ainda são tímidos. Segundo relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) publicado em 2021, o mundo caminha para um aumento de 2,7 graus Celsius na temperatura no fim deste século, bem acima da meta de 1,5 a 2 graus, se for mantido o ritmo atual de ação.
No Brasil, país intensamente dependente de transporte rodoviário, um dos setores mais relevantes para atingir a almejada meta do net zero de carbono até 2050 é o de transportes. Segundo o SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), 13% das emissões totais do país provêm desse setor. E pior: a tendência é que essa participação aumente, se nada for feito, pois o avanço tecnológico dos veículos não tem compensado o aumento exponencial das viagens – a explosão do comércio online durante a pandemia é um bom exemplo disso.
Para compreender melhor esse cenário e apontar caminhos, a Plataforma Ação pelo Clima da Rede Brasil do Pacto Global acaba de lançar o estudo “Transporte Comercial Net Zero 2050: Caminhos para a Descarbonização do Modal Rodoviário no Brasil”, realizado em parceria com Scania e apoio de BRF, Ipiranga e Unidas. Conduzido pela consultoria Bain & Company, o estudo analisa quatro grandes alternativas ao diesel usado por 90% do transporte comercial no Brasil e conclui: ainda dá tempo de chegarmos ao net zero no setor, mas o desafio será tremendo em termos de construção de uma infraestrutura que permita produzir mais biodiesel, mais biometano, mais energia para postos de carregamento de bateria e hidrogênio.
O futuro, diz Fernando Martins, sócio da Bain & Company, será de várias fontes de energia aplicadas a usos específicos. Não teremos outro combustível-coringa como o diesel, que abastece de pequenas caminhonetes a caminhões pesados – com alta eficiência energética e um custo já inaceitável de poluição.
Confira a seguir a entrevista que Martins concedeu a NetZero.
NETZERO: O estudo tem um lado otimista, por enxergar cenário em que é possível o Brasil chegar ao net zero nos transportes até 2050, mas ao mesmo tempo não deixa de reconhecer um desafio tremendo. De modo geral, quais você diria que são os principais pontos fortes e fracos do país na questão?
FERNANDO MARTINS: É verdade, o estudo mostra que sim, dá tempo de atingir a meta. Com exceção de uma tecnologia, a dos veículos movidos a célula de hidrogénio, as demais tecnologias de que precisamos para descabonizar o setor de transportes já estão desenvolvidas: biogás, biodiesel e veículos elétricos a bateria [BEVs]. Esse é o lado bom.
O desafio tremendo é o de implantar a infraestrutura. Precisamos de pontos de carregamento, redes de distribuição de gás natural e biogás, produção de biodiesel e HVO – um combustível alternativo ao diesel e que é melhor que o biodiesel, do ponto de vista técnico.
Precisamos construir essa infraestrutura e precisamos de mais geração de eletricidade, que tem que vir de fontes renováveis, não podemos abastecer essa rede com carvão ou gás natural, temos que usar fonte solar, eólica e hidrelétrica –talvez até um pouquinho mais de energia nuclear. Só não podemos falar de colocar mais carvão e gás no sistema, porque isso só transfere o problema do transporte para a geração, o que torna o cenário ainda pior, porque temos que considerar que existem perdas de eletricidade nas redes de transmissão.
Como essa questão da infraestrutura necessária para o net zero afeta a agricultura, já que algumas das fontes de energia analisadas são vegetais?
É outro problema grande. Uma parcela da energia necessária vai ter que vir da agricultura, para produzir biodiesel, HVO e biogás. O biogás vai ser produzido de resíduos, da produção de lixo orgânico que pode ser capturado, fermentado e biodigerido, como resíduos de cana e do abate de animais. Mas vamos também precisar de muito combustível líquido, então vamos precisar aumentar a área plantada de fontes de óleo digital para biodiesel e HVO.
Esse olhar para a infraestrutura é um diferencial do estudo?
Todos os estudos de descarbonização de carros e caminhões que foram feitos até aqui focaram muito no aspecto da tecnologia, da engenharia, e pouco na disponibilidade da energia. Quando a gente começou a trabalhar com a Rede Brasil do Pacto Global e com as empresas, pensamos: as tecnologias estão todas amadurecendo, não precisamos nos preocupar tanto com isso, mas sim com a capacidade de produzir a energia necessária, tanto elétrica quanto agrícola, e com a capacidade de infraestrutura para fazer a energia chegar até os veículos.
No estudo, dedicamos 70% do nosso esforço para olhar a capacidade do país de produzir energia e construir infraestrutura e para quanto isso ia custar, tanto em termos de investimento quanto de quilômetro rodado, e só 30% ou 40% olhando para o estágio de maturação da tecnologia.
E, pensando na infraestrutura, é possível construí-la antes de 2050?
Avaliamos se o Brasil conseguiria produzir suficiente eletricidade para eletrificar toda a frota do país, desde o caminhão mais pequeno até o que leva soja lá do Mato Grosso para Paranaguá. A resposta foi: “Até seria possível, mas seria dificílimo”.
Fizemos esse cálculo para os quatro combustíveis estudados. O Brasil conseguiria produzir suficiente hidrogênio para fazer a frota de todos os ônibus e caminhões de todos os tamanhos ser movida a hidrogênio? Nesse caso, teria que multiplicar a capacidade atual de geração por quatro, sem considerar o consumo natural de eletricidade que o país já tem. Ou seja, com hidrogênio seria muito difícil. E com baterias? Precisaríamos dobrar a capacidade de produção.
É até possível aumentar a produção. Área para colocar painel solar e turbina de vento, onshore e offshore, nós temos. Temos potencial para multiplicar a produção por quatro ou até mais. A nossa questão é que o ritmo de licenciamento e implantação de projetos é simplesmente inexequível até 2050.
E quanto às fontes agrícolas de produção de energia?
Olhamos então para o biodiesel e o HVO. Daria certo? Temos área plantável para fazer tudo? Sim, mas o risco de desmatamento da região da Amazônia e de biomas protegidos seria simplesmente inaceitável.
Além disso, a pressão que isso [mover toda a frota apenas a biodiesel] ia causar na segurança alimentar do Brasil seria inaceitável. Seria um custo inaceitável no mundo todo para resolver o transporte de carga do Brasil. Por fim, o potencial do biometano é bastante grande. Dá para abastecer com ele muitos caminhões, mas não todos.
Então, quando a gente olha pra isso, para todas essas tecnologias, a conclusão é que nenhuma delas resolve o problema inteiro sem antes causar problemas maiores. Por isso, do ponto de vista da infraestrutura e do fornecimento, temos que usar todas elas.
Ou seja, não vai haver outro combustível tão onipresente quanto o diesel mineral, que abastece 90% da frota hoje.
Nos últimos 150 anos o diesel foi aquele combustível maravilhoso que servia para abastecer desde uma caminhonete pequena, de uso familiar, até um caminhão enorme que vai para o Porto de Paranaguá. O futuro não vai ser assim porque o Brasil não consegue produzir uma única fonte de energia renovável que resolva todos os problemas e também porque, do ponto de vista de melhor adaptação técnica, nenhuma dessas quatro fontes é perfeita para todos os usos.
Quais são os melhores usos dessas quatro fontes renováveis?
Veículo elétrico a bateria na pratica só é bom para pequenas distâncias na cidade, porque a autonomia dos caminhões e ônibus elétricos é de mais ou menos 150 quilômetros. Isso é perfeito para uma rota urbana, em que no fim do expediente o veículo passa a noite plugado na tomada, carregando a bateria.
Mas se eu quiser fazer um caminhão elétrico que saia de Rondonópolis (MT) para Santos (SP), preciso de uma autonomia de 2.000 quilômetros. A bateria iria pesar cinco toneladas. Se faço isso, são cinco toneladas de soja que deixo de colocar no caminhão. Se uso uma bateria menor, de uma tonelada, meu caminhão vai rodar 300 quilômetros e precisar ficar parado três horas para recarregar a cada posto no caminho? Tempo é dinheiro, então isso não é viável. Veículo elétrico a bateria só é perfeito para distribuição metropolitana.
O biometano é ótimo para rotas dedicadas de até uns 500 ou 600 km. Ele serve muito bem para esse tipo de operação cativa de distância média. Também para caminhão de lixo, de bombeiro, caminhões urbanos. A longa distância pesada, em um primeiro momento, tem que ser feita com biodiesel e HVO, que é o que melhor substitui o diesel de origem fóssil em um primeiro momento. Em um segundo momento, pode ser hidrogênio, quando ele estiver mais disponível no mercado.
Ou seja, o futuro é de múltiplas fontes energéticas com usos dedicados.
Cada uma dessas tecnologias vai atender a um nicho de mercado. O futuro não vai ser dominado por uma fonte de energia ou por um combustível só: vão ser energias diferentes para usos diferentes, o que dá uma complexidade maior ao sistema do que no presente, mas também nem tanto. Hoje, se você pensar bem, os ativos já são dedicados, você não usa um caminhão superpesado dentro da cidade. As estruturas hoje já são segregadas, então é uma questão de adaptação.
Você acha que o Brasil está numa posição favorável em relação a esse futuro? Por um lado, temos muitos recursos naturais; por outro, uma frota pesadamente rodoviária. O que tem mais impacto?
As vantagens do Brasil, do ponto de vista de recursos naturais que permitem que a gente tenha uma matriz mais renovável que outros países, em grande parte já foram exploradas. Uma parte enorme do nosso potencial hídrico e de etanol foi explorada, mas ainda tempos um potencial de energia solar e eólica sensacional, quando comparado a outros países.
Por outro lado, é claro que é mais fácil eletrificar o transporte em países como o Canadá ou os europeus, porque eles já têm muita ferrovia. O Brasil tem algumas facilidades por causa dos recursos, mas depende muito mais de transporte rodoviário, o que é um fator negativo. Não sei dizer o que vai ter mais peso nessa equação. Se a gente tivesse rodovia duplicada com padrão europeu, que são rodovias mais planas, com curvas mais retas, subidas com grau de inclinação menor, mais bem terraplanadas, em que os veículos mantêm velocidade média estável, a eficiência energética seria muito maior e a pegada de carbono seria muito menor, facilmente uns 15% menores.
A guerra na Ucrânia, hoje, muda alguma coisa nesse cenário?
Eu gostaria muito que essa tragédia humana fosse aproveitada para incentivar um bom debate sobre a independência de combustíveis fosseis, mas, dada a situação de ano eleitoral no Brasil, talvez esse debate não seja feito agora.
Do lado das empresas que investem em energia renovável, do capital privado, acho que tem muita gente tomando nota do que está acontecendo, prestando atenção e observando. Quanto à sociedade em geral e o ambiente político em particular, não sei dizer, mas seguramente gostaria. Torço e cruzo os dedos para isso.
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