Há cinco anos, os executivos Amando Varella, Antonio Pupim e Rubens Martins inauguraram um modelo de co-gestão inédito na tradicional indústria do papel: os três dividem o cargo de CEO na Papirus, fabricante de papelcartão para embalagens e aplicações gráficas. Todas as decisões estratégicas são tomadas depois de muita conversa e, às vezes, discussões acaloradas – mas sempre amparadas pela cumplicidade de quase duas décadas de parceria profissional.
Sob essa liderança compartilhada, a Papirus se reinventou e assumiu de vez seu DNA transformador, que está não somente nas fibras recicladas que servem de matéria-prima para sua produção, mas também numa cultura que estimula os funcionários a caminhar juntos para fazer a empresa crescer e se desenvolver.
Num clima de companheirismo e muito bom humor, Varella, Pupim e Martins contam, na entrevista a seguir, sobre a história deles na empresa, sobre os desafios – e a amizade – que compartilham e sobre o legado que pretendem deixar:
NETZERO: Vocês se lembram de quando se conheceram? E como foi a jornada de cada um na Papirus?
AMANDO VARELLA: Se tem um cara que chegou antes de todo mundo aqui e pode contar melhor é o Pupim…
ANTONIO PUPIM: Vocês veem? Eles mandam em mim, e o problema é que é sempre dois a um. (Risos.) Eu tenho mais tempo de casa e já passei por vários modelos de gestão na história da Papirus. Quase toda a minha carreira foi aqui – entrei como comprador júnior. Depois da faculdade, trabalhei quatro anos em uma indústria têxtil em Americana (SP), que encerrou as atividades em 1979, e depois vim para cá. Querendo ou não, tive que receber os dois… (Risos.) O Rubens chegou como gerente financeiro em 2001 e o Amando, em 2006, como diretor comercial. Isso foi pouco depois de o então CEO assumir, em 1998, com a missão de profissionalizar e modernizar a empresa, que ainda tinha uma participação familiar muito forte.
RUBENS MARTINS: Como eu sou o mais velho, sou o próximo. (Risos.) Vim da indústria automobilística e de autopeças e havia passado por uma concordata como responsável administrativo. A experiência foi desafiadora porque precisava lidar com as pessoas afetadas e com as questões jurídicas. Ao mesmo tempo, contudo, aprendi a tratar os problemas com mais tranquilidade. Cheguei na Papirus com a missão de equalizar questões financeiras. E eu não só tinha que trabalhar sem dinheiro e crédito, mas tinha que investir.
“Para resolver tudo, nós três começamos a nos unir. Juntamos nossas afinidades e muito do que resolvíamos era sentando na mesa e discutindo a três.”
AV: Toda a minha experiência na vida é no papel. Eu não sei fazer outra coisa. O dia em que me mandarem embora do papel eu vou pra casa. Eu me formei em engenharia, trabalhei no parque gráfico da Editora Abril e fui levado para a Suzano em 1987, onde fiquei até 2000. Depois trabalhei por cinco anos na Ripasa e, em seguida, na Ibema, no Paraná. Minha família havia ficado em São Paulo e, em determinado momento, um colega me convidou para voltar. Vim para a Papirus em 2006. À época, me lembro de o Pupim, que havia sido promovido a diretor industrial, ser muito transparente e dizer: “Eu não sou engenheiro, mas trabalho com equipe, então vamos fazer funcionar.” Nós nos ajudávamos porque a ideia era fazer funcionar.
Eu, como sempre, não fazia nada, só ficava ali na área comercial, tranquilo, conversando com clientes, viajando. (Risos) Nesse rearranjo de gestão, começamos a fazer algo que não fazíamos antes, que era perguntar e palpitar. O então CEO, Claudio Salce, nos propiciou isso. Tivemos grandes passagens juntos e tomamos decisões fundamentais, como aconteceu em 2008, na crise do subprime americano. Tudo isso criou um grande envolvimento entre nós.
Como foi plantada a semente dessa co-gestão? Vocês toparam a ideia de cara ou houve receios?
AV: Quando eu cheguei aqui, a grande pergunta era: “O que é a Papirus?” E uma consultoria de mercado tinha dado o diagnóstico: éramos vistos pelos clientes como uma empresa muito simpática, mas com qualidade abaixo da exigência do mercado. Tínhamos um preço baixo para o que entregávamos e éramos vistos como “bonzinhos”. A questão seguinte foi: “É isso que queremos?”
Foi quando chamamos a Sarau, consultoria dedicada à geração de valor compartilhado. Fizemos pesquisas internas e externas. O mercado via a gente desse jeito mesmo. Internamente descobrimos que a mentalidade tinha a ver com a ideia de trabalharmos com sobras – talvez, por isso, as falhas eram muito aceitas aqui dentro.
Precisávamos valorizar nosso posicionamento de reciclador, que era o que fazíamos de diferente. Afinal, a Papirus nasceu reciclando. Só que a reciclagem não era valorizada como é hoje. Daí surgiu o conceito “transformamos papéis, transformamos vidas” e em cima disso montamos uma estratégia comercial.
O Pupim trabalhou na melhora da qualidade, com investimentos e matérias-primas de nível superior. Selecionamos resíduos e aparas que eram mais adequadas, melhoramos qualidade e sistemas e criamos a linha Vita.
O Rubens se virava com o orçamento: esticando daqui, tira dali, tirava de onde não tinha. Fizemos isso em conjunto porque precisávamos fazer as coisas acontecerem. Levamos essa ideia de “transformamos papel, transformamos vidas” para o conselho, e o Sr. Dante (Ramenzoni, fundador da Papirus) adorou a ideia porque era como ele se sentia.
Começamos, então, um trabalho interno de valorização do que fazíamos, explicando que o resíduo tinha qualidade e que melhorávamos o meio ambiente. Criamos um tripé com o que hoje são nossos valores: relações de valor, DNA transformador e flexibilidade. Precisávamos lidar com os “grandões”, coisa que não éramos. Então, fazíamos coisas inimagináveis para empresas grandes, como as em que eu havia trabalhado, como mudar programação de fábrica. Hoje eu acho isso muito inteligente, mas no passado eu não sabia. (Risos.)
Transformamos a mentalidade das pessoas de todas as áreas. Hoje falamos que “somos Vita” porque a empresa entrega os valores e realmente transforma papel e vidas. Essa evolução só foi possível porque nos entendemos no caminho. Enquanto isso estava acontecendo, nosso então CEO se afastou por questões pessoais. Nós três apresentamos um plano temporário de trabalho, com um modelo de gestão a três.
Como foi o momento decisivo para manter a co-gestão como algo permanente?
AV: Com o anúncio da saída definitiva do CEO, eu e o Rubens queríamos ser CEO. Eu queria ser chefe do Rubens. Ele queria ser meu chefe. E todos queriam ser chefes do Pupim, que falou que não queria ser nosso chefe. (Risos.) Apareceu, então, a ideia de contratar alguém do mercado. Nós nos olhamos e falamos: “Isso vai dar errado. Com tudo o que já construímos dentro da empresa, agora vem um cara que vai querer dar seu toque pessoal e dizer que está tudo errado?”
AP: Aí tem uma aposta minha. Lá atrás, em 2015, quando os dois queriam ser meus chefes, eu pensei: “Fica quieto que eles vão ver que trabalhar de parceiro é melhor que ser chefe.” Não deu outra.
RM: É verdade… E nós estudamos modelos de liderança compartilhada. Fomos à fábrica de filtros Tecfil ver isso de perto. Eles nos contaram o que era bom e o que era ruim. Vimos que precisávamos trabalhar os dois lados, e a coisa aconteceu de forma tão automática… Aprendemos que a honestidade entre nós três deveria ser muito forte, doa a quem doer. Nunca ficamos magoados um com o outro. Percebemos que juntos, as coisas eram muito, mas muito mais eficientes.
Como o modelo funciona na prática?
AV: Normalmente as relações de executivos sempre têm nas entrelinhas quem será o sucessor do chefe e quem vai mandar. Descobrimos que podíamos conviver juntos resolvendo problemas e descobrindo soluções. Conseguimos desenvolver algo que eu não tinha visto em outros lugares onde trabalhei. O problema tem que ser colocado e debatido.
Quando conseguimos estabelecer o fato e a partir dele colocar nosso potencial para tentar resolver, então chegamos em algum lugar. Comparamos estratégias e experiências, pedimos ajuda. Às vezes não sabemos resolver e chamamos mais gente. Não que necessariamente virá uma resposta, mas vem conversa e, nas conversas, chegamos em algum ponto.
RM: Um dos nossos desafios foi fazer as outras pessoas entenderem esse tipo de modelo também. Fizemos um primeiro orçamento para 2022 e reunimos a gestão. Falamos: “Quem vai definir o que vocês vão entregar serão vocês mesmos.” Era preciso discutir juntos, na mesma mesa. Dito e feito. Saiu um ótimo orçamento. Quanto mais você amplia a abrangência da decisão, melhor ela é.
E vocês acham que esse modelo se adequa a qualquer outro tipo de empresa?
RM: Sim. É claro que percebemos que ainda existe no ambiente empresarial o mito sobre termos “um” presidente da empresa. Mas não somos os únicos a fazer diferente. Há grandes empresas sem gestão única. O mundo está partindo para isso e para algo ainda mais interessante, que é a quebra de paradigmas do local de trabalho, de eficiência, de marcação de ponto.
Sua produção é medida pelo que você faz, e isso é a melhor coisa do mundo. Claramente percebemos que quanto mais impulsionamos os profissionais, mais eles abraçam, mais ficam motivados. Às vezes, no fim de semana, começa uma discussão no WhatsApp dos gerentes. O que é isso? É engajamento. Criamos um time engajado, com as mesmas características e objetivos e que sabem que a empresa é o trabalho deles. Eu acredito que as empresas vão migrar para isso.
AP: Eu acho que tudo nasce da filosofia empresarial. Cada empresa tem seu modelo de gerir pessoas e negócios. Algumas tentam alavancar resultados por gestão de conflitos, botando um contra o outro como se fosse uma competição.
A Papirus é uma empresa familiar, que sempre valorizou as pessoas. Se você valoriza pessoas, e não só números, esse caminho fica mais fácil.
“Além disso, nós três já tínhamos afinidade. Se um de nós tivesse saído e outro tivesse entrado, talvez não desse certo.”
As coisas vão acontecendo e temos que estar atentos e ser espertos para identificar e cultivar os benefícios, aquilo que faz sentido. É como aquela máxima “quanto mais eu treino, mais sorte eu tenho.” Quando erramos os três juntos, não tem um para acusar, criamos uma cumplicidade para resolver o futuro.
Outra coisa é que eu vibro com o sucesso deles no negócio, eu viro embaixador deles. Temos um negócio para gerir e quando vai bem para eles, será bom para mim também.
“Outra coisa bacana nesse modelo é que, em três, compartilhamos as dificuldades e não sofremos do isolamento da hierarquia. Então, sim, pode dar certo em outras empresas, mas é preciso ter essas afinidades e essa cumplicidade.”
Vocês são amigos fora da empresa?
RM: Ô! Amigões.
AV: Somos tão amigos fora da empresa que o Rubens está construindo um veleiro, e eu e o Pupim seremos grumetes dele. Não vamos deixar ele velejar sozinho.
Somos amigos e sempre que podemos queremos ficar um pouco mais juntos. Da última vez, há algumas semanas, eu estava mais carente e liguei para os dois. (Risos.) Nesse casos, especialmente quando estamos com as esposas, é muito raro falar de trabalho porque não faz sentido. Já falamos disso o dia inteiro e elas já participam muito das nossas dificuldades.
AP: E elas também criaram um vínculo e uma cumplicidade. Mas, Amando, lembra que outro dia você veio com um papo de trabalho?
AV: Lembro… E você já me cortou na hora, né? (Risos.) Eu estava com um negócio engasgado pra falar com ele. Uma pessoa havia me ligado às cinco e meia da tarde de uma sexta-feira falando sobre um problema com uma cortadeira, dizendo que não íamos faturar. Eu pensei: “Vou falar com o Pupim.” Ele me deu o maior corte.
AP: E qual foi o faturamento desse mês aí? Fala pra eles, qual foi?
AV: Foi recorde. Eu nem devia nem ter falado nisso… (Risos.)
RM: O Amando é o mais ansioso da turma. Outro dia ele me mandou uma mensagem às sete da manhã e eu respondi com uma foto do meu neto dormindo no carrinho. (Risos.)
Em uma entrevista do ano passado para o Projeto Draft, vocês comentam que liderar isolado não traz boa saúde. Como a co-gestão melhorou a saúde da Papirus e a de vocês como líderes?
AV: O Pupim foi o primeiro a externar isso. Do ponto de vista de trabalho, trabalhar como trabalhamos não é fácil. Trabalhamos demais e sob muita pressão, mas este é o momento mais feliz da minha vida profissional porque eu consigo realizar as coisas que eu penso e consigo dividir as coisas que tenho que fazer porque tenho o apoio deles. Eu não estou brigando com eles.
Do ponto de vista pessoal, minha saúde melhorou muito, minha cabeça melhorou muito, meu estresse melhorou muito. Eu era mais estressado ainda! Não dormia à noite e ficava matutando o que ia ter que conversar no dia seguinte, minhas brigas. Eu imaginei que ia chegar na Papirus e não ia ficar cinco anos porque era uma empresa muito diferente das que eu trabalhei antes, com estrutura menor e com algumas dificuldades e problemas financeiros. Estou aqui há 16 anos já e está muito bom!
Foram os melhores 16 anos da minha vida, com tudo que consegui construir junto com eles. Na empresa, estamos tentando fazer isso com as outras pessoas.
“Nosso discurso é: ‘Você não precisa brigar com ninguém, você precisa resolver os problemas porque eles não são armadilhas. Eles são fatos.’ Queremos caminhar juntos, fazer a empresa crescer e se desenvolver. Não é fácil, nem sempre vai dar certo. Mas não tem problema, vamos continuar.”
AP: Eu acho que a sinergia vai para todos os campos. Acredito na convergência de coisas positivas. Tudo isso gera uma condição positiva, tem uma atração diferente. Esses últimos cinco anos foram os melhores anos da Papirus. Tiramos da nossa frente algumas pendências críticas que se arrastavam.
RM: Essa atração positiva é verdadeira. Quando você tem essa força em volta de todo mundo, a saúde da empresa será sempre boa. As pessoas que formam o time vão entrar nela ou não vão servir. Discutimos as coisas com muita tranquilidade e isso faz bem para a alma, para o dia a dia. Você pode até sair preocupado às vezes, mas não estressado. Você sai sempre fortalecido, sabendo que no dia seguinte as coisas vão acontecer. Essa é a grande diferença.
AP: Procuramos ser vigilantes o tempo todo para sermos muito verdadeiros, principalmente na nossa comunicação interna e na maneira de tratar pessoas. Se você não for exemplo vivo do que está verbalizando, não adianta. Temos problemas e dificuldades, mas nossos programas e treinamentos estão fundamentados numa filosofia coerente e procuramos praticar e mostrar seus benefícios. Quando erramos, também tornamos público.
Como o ESG se enquadra nisso?
AV: Neste momento, estamos olhando os temas de ESG que já abordamos mas sobre os quais não falamos. Quando falamos em sustentabilidade e no aspecto social, temos diversas ações porque lidamos com catadores e cooperativas, recuperamos resíduos e reciclamos, algo que tem tudo a ver com economia circular.
Nossa fábrica economiza eletricidade, retira cada vez menos água dos rios e a devolve cada vez mais limpa. Também nunca deixamos de estar com um funcionário por raça ou gênero – e nunca permitimos isso.
Mas precisamos tocar nesses assuntos de forma mais incisiva e estabelecer metas, especialmente em governança, e formalizar isso. Estamos trabalhando nesse sentido há cerca de um ano.
AP: Inclusive, sempre que precisamos realizar inventários ou levantamentos, recebemos pontuação superior à média das empresas. Agora precisamos traduzir isso em metas.
Vocês já pensaram em escrever um livro sobre a experiência de vocês como co-CEOs?
AV: Não sabemos fazer isso. Só sabemos fazer isso que estamos fazendo agora, conversar.
AP: Até ontem a turma falava que a gente só fazia papelão. Agora a gente já consegue fazer papelcartão… (Risos.)
Como vocês trabalham para que esse modelo perdure depois que vocês passarem o bastão?
AV: Isso veio muito à tona durante a pandemia, no primeiro semestre de 2020. Como garantir a perenidade da empresa? Tivemos que olhar com frieza e calma para os cenários possíveis e, de repente, começamos a nos virar, um ajudou o outro, e foi o melhor primeiro semestre da nossa história. Vendemos muito, conseguimos demos bons resultados.
“Isso é a essência da liderança compartilhada. Acreditamos que a única maneira de perenizar esse modelo é arraigar a cultura e os valores à empresa. Fazer com que isso seja entendido pelas pessoas e seja prazeroso.”
No ano passado, organizamos um programa de treinamento focado nesse tema para a liderança e este ano queremos descer um ou dois níveis. Fortalecer ainda mais essa cultura é a única maneira de tornar esse modelo duradouro. No futuro, quem vier terá que entender que esse ambiente de liderança compartilhada é onde ele vai se desenvolver, crescendo junto com todos.
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