Depois de enfim sair do Mapa da Fome, da ONU, em 2014, o Brasil voltou a figurar na infame lista em 2018. A pandemia agravou ainda mais o quadro. Segundo estudo recente do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, o país tem hoje mais de 33 milhões de pessoas sem
ter o que comer diariamente. O volume é quase o dobro do estimado em 2020.
Quando considerada a insegurança alimentar leve ou moderada, em que há incerteza sobre a possibilidade de comer todos os dias, o número ultrapassa 58% do total da população brasileira. Diante do cenário preocupante, em especial no contexto pandêmico, a gerente de Responsabilidade Corporativa da Sodexo, Mônica Lopez Soto, diz que a empresa sofreu um choque e teve de se adequar muito rapidamente.
Operando 2.000 unidades e pontos de serviço em empresas conveniadas, a empresa teve de pensar em alternativas quando os locais simplesmente fecharam. Além disso, acostumada a distribuir cestas básicas por meio do Instituto Stop Hunger, elaborou um plano para digitalizar essa operação: saíram as cestas, com os riscos de contaminação inerentes à logística, e entraram os cartões de alimentação, que, além de tudo, trouxeram o benefício de dar mais dignidade aos beneficiados, livres para investir também em produtos de higiene e saúde.
Além disso, a companhia acelerou os programas de combate ao desperdício – outra chaga especialmente notável no Brasil – e de economia circular, com a doação de compostos orgânicos, ricos em nutrientes, para pequenos produtores.
Formada em Comunicação na PUC-SP, Mônica está há quatro anos na Sodexo. Antes, trabalhou no banco Itaú, onde se apaixonou pela área de sustentabilidade. Para ela, é indispensável que as empresas, que faturam e se beneficiam do mercado brasileiro, preocupem-se em investir na sociedade, retribuindo seus ganhos.
Confira a seguir a entrevista de Mônica Lopez Soto a NetZero.
NETZERO: Como foi esse percurso até o trabalho com responsabilidade corporativa?
MÔNICA SOTO: No fim do curso de Comunicação fui fazer um estágio no Sesc, com arte-educação, e gostei da experiência. Quando me formei, soube que o Itaú estava montando uma área de gestão de conhecimento e uma amiga me indicou. Fui, passei. Nunca tinha me imaginado em banco, mas aquilo era diferente: minha coordenadora era formada em artes plásticas, tinha outra cabeça. A gente trabalhava com treinamento, basicamente ensinava a área comercial a vender produtos para empresas.
Mais tarde, fiquei fascinada com o trabalho da área de Sustentabilidade do Itaú e comecei a estudar o assunto. Meu primeiro passo foi trabalhar com análise de risco socioambiental dos produtos. Aprendi muito. Depois surgiu vaga para a área de sustentabilidade. Daí a mágica aconteceu e eu vi o poder que uma grande empresa tem para gerar impacto positivo na sociedade.
Você lembra de algum episódio marcante relacionado a essa descoberta?
Minha primeira vitória foi colocar requisitos de sustentabilidade no setor de compras. Isso demorou muito para acontecer, pois as pessoas ainda estavam se acostumando a essas ideias, a ver além do custo/qualidade do produto. Esse projeto foi puxado pela área de Sustentabilidade do banco e eu liderava pela área de compras.
O fato de ter sido voluntária em ações sociais desde jovem influenciou seu interesse pela área?
Sim, eu sempre tive sensibilidade para questões sociais. Aprendi muito enquanto acompanhava os meus pais, em São Carlos (SP), que iam a comunidades vulneráveis fazer a entrega de cestas básicas, roupas e brinquedos. Fazer voluntariado possibilita que você reconheça o seu lugar de privilégio e sensibiliza a pensar na sociedade de forma diferente, a sair da bolha e atuar em prol de um mundo melhor. Fiz voluntariado no Itaú, faço na Sodexo, faço quando vou a São Carlos. Estar em contato com essas pessoas mais vulneráveis é importantíssimo para ter mais consciência e tentar mudar o futuro.
Você começou em que área na Sodexo?
Comecei já na área de Responsabilidade Corporativa, em 2018, como analista sênior. Mas a área na época ficava abaixo da Comunicação. Depois, passou a ficar diretamente abaixo da presidência, o que foi uma mudança muito estratégica. Cheguei com um desafio muito grande porque a Sodexo estava naquele momento relançando sua estratégia de sustentabilidade à luz do lançamento dos ODS [Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável] pela ONU.
Até que ponto é possível – e necessário – “tropicalizar” a agenda ESG de uma multinacional?
“A agenda de sustentabilidade da Sodexo, chamada Better Tomorrow 2025, é global, mas a matriz de materialidade passou por todos os países para ser construída. Então a gente deu uma tropicalizada nela. Ou seja, a agenda é global, mas no Brasil damos prioridade a certas questões, como a alimentação.”
Temos 2.000 unidades e pontos de serviço em 23 Estados e o Distrito Federal, então o que é prioritário no Brasil para nós é a questão do desperdício de alimentos e a fome. A gente trabalha muito fortemente nessas questões. Segundo a ONU, o Brasil está entre os dez países que mais desperdiçam comida – cerca de 40% de tudo o que é produzido. Ao mesmo tempo, mais da metade da população está em situação de fome ou de insegurança alimentar.
É uma das questões sociais mais graves do país hoje.
Sim, o Brasil, que havia saído em 2014 do Mapa da Fome da ONU, voltou a ele. E isso também está ligado a uma questão ambiental. O alimento que vai parar em lixões, que infelizmente ainda existem, e aterros, entra em decomposição e produz gases de efeito estufa.
“A ONU diz que 10% das nossas emissões são causadas por desperdício de alimentos. Se o desperdício de alimentos fosse um país, ele seria o terceiro maior poluidor do mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos. Economicamente, isso significa 1 trilhão de dólares jogados no lixo.”
Como trabalhar a questão do desperdício nos restaurantes?
Trabalhamos com uma área de food intelligence e mantemos um programa chamado “Cozinha Inteligente” em 256 unidades pelo país. Em comparação a uma cozinha tradicional, as unidades com alta tecnologia conseguem uma redução de 21% no consumo de água, 32% no consumo de eletricidade, 30% em resíduos orgânicos, 62% no consumo de gás e 40% a menos de óleo.
Ao mesmo tempo, a companhia lançou um programa chamado WasteWatch que tem como uma de suas metas reduzir o desperdício em 50% em toda a operação até 2025. Começamos neste mês. Balanças inteligentes geram um dashboard que aponta o que está gerando desperdício, o que está mal planejado.
Quando não é possível evitar o desperdício, o que é feito?
Temos dois caminhos. Se é um alimento que eu não posso reutilizar, mandamos para a compostagem. Isso está dentro do princípio da economia circular: faço esse processo, o lixo vira adubo e parceiros distribuem esse composto orgânico para pequenos produtores. Essa ação une o aspecto ambiental e o social, pois esse é um material muito rico em nutrientes e que custaria caro se comprado.
O outro caminho é o alimento que chamamos de “sobra limpa”. É aquele alimento que ficou na cozinha, não foi servido. A gente tem um programa de doação do excedente de produção, e aí entra o instituto Stop Hunger, criado por colaboradores da Sodexo nos Estados Unidos e que está presente em 47 países, tendo o Brasil como destaque.
Como funciona o Stop Hunger?
Ele atua em três pilares: suporte a populações locais, apoio a empreendedores sociais e assistência em caso de emergências – que foi o que fizemos durante a pandemia toda. A pandemia fez a gente inovar em vários aspectos no quesito assistência emergencial. Por exemplo, a gente distribui cestas básicas, mas, na pandemia, isso tinha de chegar mais rápido às pessoas e com menor risco de contaminação. Então a gente pegou o próprio cartão da Sodexo e o transformou em cesta básica digital.
No ápice da pandemia, entre 2020 e 2021, direcionamos R$ 2,5 milhões para 300 organizações cadastradas no Stop Hunger por meio de cartão alimentação. Foi ótimo porque agilizou o processo e principalmente porque deu dignidade para as pessoas escolherem o que queriam comprar. Além de comida, puderam comprar produtos de higiene, essenciais em uma crise sanitária, e isso também levou a um aquecimento de economias locais.
E no negócio da Sodexo como foi o impacto da pandemia?
Foi um choque. Tudo fechou. A gente presta serviço dentro da casa do cliente, então precisou de toda uma reestruturação de modelo de negócio. Lançamos delivery, usamos o restaurante da sede, entramos para aplicativos de entrega, trocamos almoço físico por cartão de benefício. Paralelamente, fomos nos preparando para a volta, porque as pessoas iam voltar em algum momento e precisávamos garantir que voltassem seguras.
Qual deve ser o papel das empresas no atendimento a essas demandas sociais? Empresas devem ajudar o Estado a garantir segurança alimentar?
Acho que no Brasil principalmente é uma questão muito crítica. Além disso, acho que as pessoas confiam mais nas grandes empresas e marcas do que no governo.
“Se estamos aqui usufruindo do mercado, fazendo nosso negócio, gerando faturamento, temos de contribuir também, principalmente nesse contexto em que as pessoas não têm segurança no governo e esperam que as empresas se interessem por questões sociais e ambientais, principalmente no pós-pandemia.”
A gente tem que endereçar isso, dar apoio, porque não há uma segurança em relação às ações do governo.
A sociedade cobra isso das empresas?
As pessoas estão cada vez mais conscientes, com mais acesso à informação, e temos uma geração exigindo mudanças. Tenho uma sobrinha de 6 anos que tem aula de sustentabilidade na escola e cobra todo mundo da família. Então a cobrança vem da sociedade, mas também dos próprios dos colaboradores. Ninguém mais quer trabalhar em um lugar que não tenha responsabilidade corporativa. As pessoas estão buscando propósito, e muitos dos nossos clientes pedem muitos compromissos de nossa parte nas concorrências. Então vem de todos os lados a cobrança. No fim isso é bom para o meio ambiente, para as pessoas e para o negócio.
Estamos avançando nessa agenda no Brasil?
O Brasil está caminhando, mas lentamente. Em outros países, talvez por [terem] mais investimento, mais maturidade, estão mais avançados. Eles puxam a gente e cobram essa mudança. Na próxima década estaremos em um momento de mais foco, mais agilidade e preocupação corporativa com todas essas questões.
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