Ganhar dinheiro é uma missão dura para o empreendedor, e quando se trata de projeto de impacto social, muitas vezes as barreiras se multiplicam. Porém, para executivos como Luciano Gurgel, hoje à frente da agência de fomento Artemisia, resolver problemas da sociedade brasileira é uma área que representa uma avenida aberta para bons negócios.
Com experiência no mercado financeiro, Gurgel foi notando dois movimentos: a lógica da perpetuação da concentração de renda e como o acesso ao capital assombra o empreendedorismo no país, com uma concentração bancária que dá a cinco instituições o controle de 72,6% do dinheiro disponível para crédito, de acordo com o Banco Central.
Facilitar a maturação e o financiamento de startups que se propõem a melhorar os indicadores de educação, habitação, meio ambiente, mobilidade, energia e outros gargalos do desenvolvimento do país é a missão da Artemisia, fundada em 2005 e referência na aceleração de empreendedores sociais.
As parcerias com grandes empresas como Facebook, Gerdau, Casas Bahia e outras, vêm garantindo fundos de investimento que, ano após ano, servem de impulso a projetos com potencial de resolver centenas de questões, desde o acesso a exames médicos à conexão entre o consumidor e o produtor de energia elétrica de fontes renováveis.
Sua trajetória passou por uma mudança na visão de se fazer negócios, mas sem perder o faro para o lucro. Em entrevista a NetZero, comenta ainda sua passagem pela Yunus Negócios Sociais, ligada ao “pai do microcrédito” Muhammad Yunus, banqueiro e economista de Bangladesh que recebeu o Nobel da Paz em 2006.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
NETZERO: Você saiu do “core” do mercado financeiro para o mercado de negócios sociais. O que motivou essa guinada?
LUCIANO GURGEL: Eu gosto sempre de dizer que sou filho de uma família de classe média de São Paulo, cujos pais sempre tiveram muita educação política e nos embutiram consciência social. Saí de uma família do Cambuci para fazer Colégio Bandeirantes e FEA/USP (Faculdade de Administração da Universidade de São Paulo), somos tributários de recursos sociais. A sociedade tem um recurso, a universidade. Quando eu ocupo uma vaga lá, sou tributário desse recurso. Lembro de ir para a faculdade e ver no estacionamento BMW, Mercedes e Audi parados e pensar: “Tem uma coisa estranha nesse negócio”. A universidade pública tinha os alunos mais ricos, e o sistema educacional era quase uma forma de concentração de renda. Isso mudou muito com as cotas, hoje fico feliz de ver alunos negros e negras na FEA, vindos da periferia, mas nos anos 1990 não era assim.
No mercado financeiro, eu sentia esse incômodo. Tudo bem ganhar dinheiro, mas eu pensava que tinha me formado em uma das melhores universidades do país e estava gerando recursos com o objetivo de gerar concentração de renda, sempre pensei nisso.
Como foi a experiência no Yunus Social Business, ligado ao “pai” do microcrédito e dos negócios sociais?
Eu pensava: vou trabalhar numa ONG. Mas e os 17 anos de experiência no mercado que eu tinha, como iria aproveitar? Aí eu conheci a Yunus, um lugar em que justamente você pode usar o instrumental e a técnica do mercado financeiro para incentivar negócios sociais.
Fizemos o primeiro fundo de renda fixa dedicado a impacto social no país [o FIDC Yunus, criado em 2018 e ainda em operação]. De certa forma foi virar o lado da moeda do que eu fiz a vida inteira. Sempre fiz negócios, modelos de negócios. Em banco, a gente fica com faro para negócio, você é treinado para ter um olhar crítico e rápido sobre o que é um bom negócio. O que eu aprendi na Yunus e vejo agora é que resolver problemas sociais e ambientais são excelentes oportunidades de negócio. Os negócios sociais são aqueles que enxergam isso.
A linguagem de negócio é como partitura musical: tem a mesma escala, você usa dependendo do ritmo que você vai tocar, do clássico ao samba de roda. Uma vez que você se apropria dessa linguagem, você pode usar nos mais variados contextos, e se você pode fazer isso para melhorar a vida das pessoas, a mágica acontece. O que foi muito legal na passagem pela Yunus é que a gente criou um modelo independente. Apesar da placa de referência do Muhammad Yunus [banqueiro de Bangladesh, criador do Grameen Bank, focado em microcrédito], nós montamos uma operação autônoma no Brasil, com investidores, empreendedores e colaboradores brasileiros.
É comum a crítica à falta de incentivos para o empreendedorismo no Brasil. Como você avalia?
É como o Yunus fala: você não deve ter nenhum cercadinho, isenção, estímulo. A empresa deve existir de acordo com a situação do país. Nosso país tem carga tributária altíssima, algo que não atinge só o empreendedorismo. Algo que acho que atinge especialmente o empreendedorismo é o acesso ao capital. Nosso mercado é concentrado, os sete maiores bancos concentram mais de 90% dos ativos de crédito do Brasil, uma das maiores concentrações do mundo.
Desta forma, os bancos viram um oligopólio com taxas altíssimas e acesso dificultado. As empresas pequenas são as que mais sofrem, e geram 85% dos postos de trabalho e 50% da massa salarial. A gente deixa de prover oxigênio para o segmento da economia que mais gera emprego e renda. O sistema [financeiro] concentra renda. Minha chegada na Artemisia tem a ver com reforçar os acessos de crédito aos empreendedores sociais, com minha expertise, contatos e experiência de mercado.
Qual a característica de um projeto promissor de negócio social?
O primeiro é o entendimento profundo do problema que ele se propõe a resolver. Se ele conhece o problema já é um bom começo. A segunda é o empreendedor entender o negócio, e isso pode ser muito instintivo – Yunus provou que você não precisa estudar em escolas para saber de negócios, é uma habilidade nata, qualquer pessoa, uma mulher analfabeta pode ser empreendedora, ela precisa de condições. Essa habilidade é uma característica importante. A terceira é o comprometimento, estar realmente ali, e não apenas “abrindo um negócio”. A gente vê pessoas que sonham em resolver um problema social ou ambiental – é disso que se trata.
Como funciona o trabalho da Artemisia de fazer a ponte entre empresas como o Facebook e projetos de negócios sociais?
A Artemisia é uma das organizações pioneiras em negócios de impacto social, foi criada em 2005, um ano antes do nobel do Yunus, que popularizou isso. Dentro dessa proposição de alavancar negócios, ela veio fazendo coalizões, e as grandes empresas foram se inteirando e tomando parte nisso.
Hoje todo mundo fala de ESG, e há 17 anos atrás a Artemisia já dizia que é função do capital e das grandes corporações trabalhar para resolver os problemas. Assim trouxemos essas grandes empresas para o jogo. Coalizões com Gerdau, Votorantim, Vedacit, Leo Madeiras. Hoje temos uma coalizão de educação com o Instituto Umane, uma de inclusão produtiva com a Meta/Facebook, Fundação Casas Bahia, é complicado até citar por deixar alguns parceiros de fora. A Artemisia conseguiu se colocar nessa posição de interlocução. Somos a organização líder do BNDES Garagem, um fundo que fomenta esses projetos de impacto.
Proporcionamos apoio a empreendedores e suas startups, desde que elas promovam soluções para as áreas social ou ambiental. Quando você vai empreender, para quem você pede ajuda se você nunca viu um contrato social, um plano de marketing, um business plan? O que nós fazemos é formar uma rede de apoio para esse empreendedor ir fechando as lacunas. Apoiamos eles nos seus gaps, inclusive no acesso ao capital, fazemos essa articulação para que além da capacitação o empreendedor possa acessar o capital adequado para o seu estágio de negócio.
Os negócios sociais têm obrigatoriamente o ESG embutido? Como você vê essa questão nos projetos que passam pela Artemisia?
É uma ótima pergunta. A gente já sabe quando o negócio nasce com a vocação de transformação positiva – isso está no perfil do empreendedor. Acontece muitas vezes de ele não saber que o negócio dele é de impacto [social]. Normalmente o empreendedor que vem para a gente já conhece isso, só não sabe o nome. A gente brinca que esse cara é raiz, ESG é Nutella, uma coisa do mercado. Gostamos de falar em impacto social.
Aprendi ao longo da minha trajetória a refinar o olhar para identificar o empreendedor com drive para fazer com que o negócio dele cause uma transformação na sociedade. Um caso clássico no mercado convencional é uma empresa que emite um bond [títulos de dívida, para arrecadar fundos] e diz que os recursos vão trocar uma frota de gasolina para álcool, e diz que está causando impacto ambiental positivo. Ao mesmo tempo ela desmata, polui, mas o investidor acredita que está investindo em algo bom.
Não trabalhamos com empresas que trabalham para compensar o mal causado, mas sim com empresas que tenham uma proposta de transformação positiva, que façam bem. Inclusive órgãos reguladores já estão de olho nisso, em empresas que estão falando em ESG mas apenas com ações específicas e sem um comprometimento total.
Olhando o portfólio de acelerados da Artemisia, há propostas de soluções incríveis. O que dificulta o caminho para a escala?
Essa resposta é difícil. De todos os casos que a gente conhece, um fator transversal é a dificuldade de acesso ao capital, mas também falta um olhar dedicado. O campo de negócios de impacto até hoje foi sempre muito generalista, com 30 startups em um grupo, com conteúdos diversos. Hoje, um olhar técnico, de consultoria, dedicado às especificidades é necessário.
O mercado amadureceu. Nós focamos no que cada um deles precisa de marketing, recursos humanos, entre outros, e incentivamos esse olhar técnico e individualizado que defendemos na Artemisia. Em comparação com Europa e Estados Unidos, é preciso mais apoio a essas ideias, centros tecnológicos para hospedar a startup, ou então o dinheiro para o empreendedor social. É uma vida solitária para o empreendedor, e a Artemísia busca dar esse apoio.
Como foi o impacto da pandemia sobre as inscrições de novos projetos e também sobre o desenvolvimento da aceleradora?
Foi uma coisa interessante. Entre os negócios de impacto, tem uns com mais ou menos componentes tecnológicos, como negócios que lidam com resíduos. Mas diria que a maior parte, como eles tem um componente tecnológico importante, não sofreu tanto. Por serem inovadores por natureza a pandemia até gerou oportunidades. O campo [dos negócios sociais no Brasil] como um todo reagiu bem, na minha opinião. O número de inscrições de projetos na Artemísia ficou estável.
Conseguimos atravessar a pandemia com ações como o fundo Volta por Cima, criado no auge da pandemia para gerar crédito e manter os negócios, manter funcionário. Foi um teste de vida, de geração.
Você está prestes a completar um ano na direção da empresa. Prevê ajustes na trajetória da Artemisia?
Costumo brincar que a gente faz um pós-posicionamento. Existe o reposicionamento, em que você passa a fazer algo novo, mas aqui a gente amadurece com o campo. A Artemísia nasceu com o campo, foi pioneira nos negócios sociais no país, criamos awareness e vivemos em simbiose com o ecossistema de negócios de impacto. A gente gera o campo e o campo nos alimenta.
Temos muita escuta na organização, e imagino muitos e muitos anos pela frente. De 2005 para cá o tema [negócios sociais] cresceu e está muito disseminado, e a gente está pronto, posicionado para os desafios dos próximos anos. Com parceiros com conversa refinada, de alto nível, um time qualificado.
Eu já tinha conversas no mercado com Gerdau, Votorantim, Cyrela, e hoje é uma grata surpresa reencontrá-los para falar desses temas nobres, e a Artemísia me coloca nesse nível de interlocução. Eu não poderia estar mais contente.
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