Escrevo este primeiro artigo de 2023 ainda sob o efeito da poeira turva gerada pelas Americanas, mas sem o torpor dos primeiros dias que se seguiram à divulgação do mais importante escândalo de governança empresarial na era pós-ESG.
Espere ouvir falar à exaustão do caso nos próximos anos. O singelo rombo contábil de R$ 47 bilhões, “ignorado” pelos três principais acionistas da companhia, será fonte de prática negativa em salas de aulas e palestras de sustentabilidade, assim como, nos últimos anos, tem sido objeto de contraexemplo o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho – assim como foi, em passado recente, a fraude de Enron, Worldcom e Parmalat e a desfaçatez do megainvestidor Bernie Madoff (ver, na Netflix, a série “Madoff: o monstro de Wall Street”). Episódios deste tipo são feridas que não cicatrizam fácil. Chagas institucionais criam paradigmas.
Para o que me importa, neste artigo sobre tendências, o caso Americanas (um desastre de G, com impactos perversos em S) abre a tampa e despeja temas que devem virar preocupação dos atores da cena ESG brasileira. Mais do que isso, no plano dos grandes debates, inspira reflexões importantes sobre o tipo de capitalismo que estamos dispostos a aceitar.
Se já havia na sociedade uma desconfiança crônica em relação à transparência das empresas, ela deve se tornar aguda e crescer de forma exponencial. Vai sair do modo “pulga atrás da orelha” para o de “orelha em pé”, pressionando as empresas, organizações setoriais, ratings, certificadoras e curadoras de prêmios a serem muito mais rigorosas em suas réguas. O golpe foi duro. Não só porque veio de uma das maiores varejistas do mundo (222ª posição, segundo “Os Poderosos do Varejo Global 2022”), uma queridinha entre os investidores. Mas porque expõe a fratura de todo um sistema viciado e das relações muitas vezes cínicas que o estruturam.
Espere, para 2023, um movimento de revisões profundas com densidade shakespeariana. Um mergulho quase psicanalítico à procura de respostas existenciais. Instituições como a CVM e a B3 (especialmente, o seu Índice de Sustentabilidade Empresarial), buscarão, certamente, ser mais cuidadosas em suas análises sobre as práticas de ESG nas empresas brasileiras. Gestores de fundos terão que ser mais diligentes na hora de selecionar ativos empresariais com boa pontuação ESG, recorrendo a ratings baseados em dados mais precisos e métodos mais consistentes. Companhias realmente sérias no trato das questões de sustentabilidade escolherão melhor as suas auditorias (sim, o balanço das Americanas passou por uma auditoria!)
Se não quiserem ser cúmplices de modelos de negócios irresponsáveis e predatórios, os conselhos de administração cobrarão maior transparência de CEOs, questionarão os salários e bônus exorbitantes de executivos tratados como deuses, e também decisões que prejudicam pessoas e meio ambiente. Estarão mais atentos às entrelinhas dos balanços cujos números conhecem ou deveriam conhecer.
Nunca é demais lembrar. As Americanas integravam o ISE da Bolsa de Valores de São Paulo, uma carteira de empresas mais sustentáveis. Neste “rating” da B3, desfrutavam de uma posição privilegiada: 12ª melhor pontuação entre as 70 classificadas. Tinham, portanto, o carimbo do mercado e uma imagem de “empresa sustentável” chancelada pelo que, no passado, de valores menos líquidos, chamávamos de “formadores de opinião” – em 2022, a empresa faturou o prêmio da revista Exame como melhor em ESG do ano (acredite se quiser!) na categoria Atacado, Varejo e e-Commerce.
Histórias como o das Americanas, que só se reproduzem no limbo do velho capitalismo de shareholders, colocam dose extra de pimenta no argumento dos céticos de plantão do ESG.
A onda dos anti-ESG, não por acaso, ficou alvoroçada nas últimas duas semanas. Não me refiro aqui ao movimento dos republicanos norte-americanos que afrontam o ESG para defender o interesse dos produtores de petróleo preocupados com a concorrência das energias renováveis. Refiro-me aos muitos brasileiros que acham ESG uma cortina de fumaça para empresas esconderem seus malfeitos; uma máscara bonita para disfarçar compromissos frouxos com a ética, as pessoas e o planeta.
Passei uma boa parte das duas últimas semanas respondendo e-mails de amigos convictos de que o caso Americanas seria uma espécie de suspiro final do ESG. Não, claro, não será. ESG é meio, não fim.
É uma resposta dos investidores millennials à necessidade contemporânea, felizmente reconhecida neste século 21, de termos empresas responsáveis, transparentes, orientadas por propósito e melhores para o mundo. Segundo estudo global da Infosys (Radar ESG 2023), os investimentos em ESG nas empresas devem bater os US$ 53 trilhões até 2025 – um terço dos ativos globais. Cerca de 90% dos líderes empresariais entrevistados reconhecem que ESG traz retorno financeiro positivo e num prazo (41%) de dois a três anos. Cada 10% de gastos com ESG resultam em crescimento de 1% no lucro do negócio.
Culpar o ESG por um escândalo como o da Americanas é tão leviano quanto atribuir a violência à faca e não a quem a utiliza com o dolo de ferir. É tão ingênuo quanto achar que o antijogo praticado por alguns jogadores e times de futebol se deve às regras que, pelo contrário, pregam o jogo bem jogado.
Seis recomendações para quem quer praticar ESG de verdade
De todo modo, não precisa ser analista de tendências para antecipar o cenário que vem pela frente: os stakeholders, regra geral, estarão muito mais críticos quanto à coerência entre o que a empresa e os atores de mercado dizem e o que fazem em ESG.
Se você que me lê, líder de empresa, aspira atuar efetivamente sob à luz do ESG, recomendo seis movimentos:
(1) equilibre as suas ações nas três dimensões (ESG não é só meio ambiente, muito menos só clima; identifique os grandes temas sociais, ambientais e de governança que podem impactar ou ser impactados pelo seu negócio;
(2) desenvolva uma estratégia e confira a ela o mesmo zelo dedicado às grandes decisões empresariais (ou se imprime ESG status estratégico ou suas práticas não vão mudar o jeito de pensar e fazer negócios da empresa);
(3) assuma compromissos públicos, que expressem a necessária transparência junto aos stakeholders;
(4) defina metas ousadas coerentes com o tamanho dos impactos gerados pela empresa;
(5) escolha métricas precisas (há muitas no mercado);
(6) implante planos de ação compatíveis com os desafios estabelecidos nas metas. Do contrário, correrá risco fazer o mínimo para constar ou de levar escorregões dolorosos.
12 temas de ESG em alta
Um recado aos gestores de ESG nas empresas: entre os temas em alta para 2023, apresento uma lista básica com 12 itens que precisam estar no radar. Vamos a eles:
(1) mudanças do clima e descarbonização (empresas seguirão desafiadas a construir metas factíveis de Net Zero);
(2) diversidade e inclusão (o próximo passo será integrar as políticas à estratégia global de gestão de talentos);
(3) saúde mental (empresas continuarão a apoiar os seus colaboradores com programas de prevenção);
(4) investimento social privado estratégico (cada vez mais as iniciativas precisarão gerar impacto efetivo em comunidades e territórios);
(5) políticas de compra sustentáveis (não será possível cumprir integralmente metas de sustentabilidade sem envolver os parceiros da cadeia de suprimentos);
(6) acreditação pública por terceira parte de processos e impactos (como forma de assegurar a credibilidade das entregas ESG e superar a desconfiança em alta);
(7) mapeamento e relacionamento estratégico com stakeholders (para avaliar e gerenciar expectativas antes que gaps importantes resultem em crises institucionais destruidoras de valor);
(8) aumento dos comitês de ESG com membros externos;
(9) maior interesse pela preservação da biodiversidade;
(10) ampliação do volume de investimento em inovação para a sustentabilidade;
(11) expansão no uso de ferramentas financeiras como os títulos de dívida atrelados a metas socioambientais;
(12) declarações de propósito e inserção de ESG na estratégia de negócio.
Liderança sustentável em alta
Minha aposta menos óbvia é que o caso Americanas vai acelerar no Brasil duas discussões importantes, ainda não devidamente tratadas pelo conjunto das empresas interessadas em ESG. As duas são estruturantes. Têm a ver com a dimensão G da Governança. E, do meu ponto de vista, determinam o sucesso de uma estratégia ESG.
A primeira é sobre a urgência de um novo tipo de liderança, orientada por valores, e se ampara em teses de pensadores de negócios antes vistos como “alternativos”, agora cada vez mais cultuados como Richard Barret, Raj Sisódia e Frederic Laloux. A segunda discussão, intimamente associada à primeira, diz respeito à premissa de que não existirá estratégia efetiva de ESG sem cultura organizacional orientada por valores de ESG.
Parece um debate etéreo. Mas não é. Decisões de negócio não são mais, como no passado, atos neutros, isolados e exclusivamente técnicos. E esta é uma expectativa que cresce com a nova noção de sucesso empresarial propagada pelos millennials no poder.
Decisões de negócios são sobretudo atos humanos que podem melhorar ou piorar a vida de pessoas e meio ambiente. A hipótese de piorar já não é mais tão tolerada quanto já foi um dia. Logo, os negócios melhores para o mundo exigirão cada vez mais líderes conscientes, empáticos, transparentes, inclusivos e ecocêntricos. Líderes com um perfil humanizado que representam a exata antítese do trio de mandatários das Americanas.
Entre as muitas críticas atribuídas a eles, está a obsessão pela cultura de resultados a qualquer custo, que admite, ao mesmo tempo, protelar o pagamento a pequenos fornecedores e pagar bônus colossais a executivos pouco transparentes.
Em oposição a este tipo de prática, a liderança sustentável, um novo degrau civilizatório, deve ganhar impulso. Menos talvez pela consciência do meio sobre os benefícios decorrentes de suas virtudes. Mais pela convicção, no outro extremo, de que os vícios do provecto e bolorento capitalismo de shareholders, significam novos riscos.
**Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável e co-fundador de NetZero.
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