Mais ESG, menos resultado a qualquer custo: como esta lógica pode melhorar o futebol – dentro e fora dos campos

O que pode haver de comum entre os episódios recorrentes de racismo contra o jogador Vinícius Júnior na Europa, os coros homofóbicos da torcida do Corinthians contra o São Paulo e o maior esquema de manipulação de resultados no futebol brasileiro revelado há um mês?

Tivessem ocorrido numa empresa de capital aberto os três casos seriam tratados hoje como externalidades nas dimensões social e de governança do ESG. Tão importante quanto isso, demandariam atenção especial, estratégia, planos de ação, investimento, metas e métricas para controlar potenciais riscos operacionais, financeiros e reputacionais.

Para quem, como eu, adora o futebol, não há como deixar de enxergar os benefícios da noção de ESG aplicada ao esporte: cuidados sociais e ambientais, ativismo de causas públicas e políticas de proteção da ética e da transparência distribuem valor a todos os stakeholders. Investidores, patrocinadores, jogadores, torcedores, reguladores, trabalhadores do setor e sociedade têm muito a ganhar com uma gestão mais responsável, compliance financeiro, redução de emissões de carbono, regras anticorrupção e de tolerância zero ao desrespeito à diversidade e aos direitos humanos.

Começo essa reflexão sobre ESG no futebol emprestando do sistema B uma máxima altamente definidora da nova lógica de sustentabilidade corporativa: as sociedades exigem, cada vez mais, empresas melhores para o mundo, mais éticas, responsáveis e cuidadoras em relação às pessoas e ao planeta. Usando por extensão o mesmo raciocínio, é justo afirmar que o futebol seria melhor se os clubes fossem melhores para o mundo. E embora esta seja uma ideia difícil de ser refutada por pessoas sãs, ela contrasta com a cultura de um setor historicamente regido pelo nexo competitivo de ser “o melhor do mundo” e que aceita, em nome da vitória, a “ética do resultado a qualquer custo” – isso significa, muitas vezes, triunfar a despeito da justiça desportiva, tirando proveito de circunstâncias que desvirtuam a regra do jogo, desequilibram a competição e prejudicam o adversário.

Basta acompanhar os programas esportivos para confirmar o peso dessa ética muito particular. Dependendo da orientação clubística do comentarista, ele será mais ou menos propenso a aceitar um gol de mão a favor do seu time, uma expulsão injusta do adversário, um pênalti inexistente que define o placar, um erro claro do juiz em benefício do próprio time ou contra um time pelo qual se tem antipatia. O torcedor adota o mesmo comportamento parcial, narcisista e egocêntrico: tende a ser complacente com o erro que prejudica o adversário; no outro extremo, às vezes aplaude, ri, escarnece, festeja o juiz inepto que erra a favor do seu clube ou o jogador que burla a regra para conseguir a vitória a qualquer custo.

Recentemente, um dos mais importantes atacantes do futebol brasileiro simulou uma cotovelada no rosto durante um clássico estadual. A encenação “funcionou” e o defensor acabou sendo expulso, deixando o seu time com um homem a menos. As cristalinas imagens de TV não deixam nenhuma dúvida de que o zagueiro apenas empurra o braço do jogador. Não satisfeito com a pantomima, o controverso atacante, ainda no chão, sorri marotamente, para os colegas, comemorando o efeito de sua farsa. Incomodado, assisti o lance em diversos canais. Em apenas um deles, a “malandragem” foi condenada. Nos demais, foi considerada “normal”, ou pior ainda, sinal de esperteza.

CLUBES MELHORES PARA O MUNDO E O FIM DA LÓGICA DO RESULTADO A QUALQUER CUSTO

Como aprendi com o professor Robert Srour, da Universidade de São Paulo, ética é vara de marmelo, não de bambu. Não pode ser muito flexível sob pena de aceitar diferentes “tons de certo” dentro do espectro do que é “errado”, estimulando uma tolerância perigosa, que premia o vício e não a virtude, subverte a ordem dos direitos e deveres, deseduca em vez de educar. O futebol ainda é o campo da celebração vícios.

A tolerância implícita na lógica do “ganhar a qualquer custo” – o oposto do que propõe o ESG – está na base da maioria dos desvios éticos deste setor. Ou, então, vejamos. Em nome da vitória no campo, o torcedor acha normal o seu clube desmoralizar o fairplay financeiro, gastar mais do que pode ou deve, deixar de pagar impostos. Acha aceitável contratar um jogador a peso de ouro, sem receitas previstas para o salário, ainda que tal atitude resulte em comprometer o pagamento de fornecedores ou colaboradores mais simples. Considera razoável abusar do poder financeiro para assediar jovens talentos de outros clubes, sem instrução, oferecendo dinheiro farto e promessas fantasiosas de futuro, numa evidente prática de “concorrência desleal.”

Em nome da “cultura do futebol” e contra o “mimimi” dos intelectuais, o torcedor se diverte em entoar cânticos homofóbicos para provocar a torcida adversária ou proferir gritos racistas para desestabilizar o craque oponente, mesmo sabendo que essas atitudes ferem leis e regulamentos já consagrados pela sociedade e pelas entidades responsáveis pelo esporte. Naturaliza a corrupção das empresas de apostas e o ato criminoso de jogadores venais que vendem pênaltis, faltas, cartões amarelo e vermelho para mudar resultados de jogos. Passa pano até para o estupro de grandes craques de caráter fraco, transferindo a responsabilidade para as mulheres vítimas de abuso.

Passional a ponto de ignorar princípios de humanidade, o torcedor banaliza e estimula a violência contra jogadores do seu próprio time ou torcedores adversários, nos estádios e fora deles, apenas porque eles não tiveram um bom desempenho profissional ou escolheram um time diferente do seu para exercitar sua paixão. Muitos dirigentes agem do mesmo modo. Distorcem a realidade para ficar da cor de sua camisa. Ou de seus interesses. Durante a pandemia, vale lembrar, alguns grandes clubes nem se envergonharam de forçar a mão para o retorno das torcidas aos estádios, contrariando o bom senso das medidas de saúde pública.

COMO (E POR ONDE) COMEÇAR UMA ROTA ESG NO FUTEBOL

Se quiserem, de fato, construir clubes melhores para o mundo, em vez de simplesmente desejarem ser “os melhores do mundo” dirigentes, jogadores e torcedores terão de se adequar aos novos limites éticos desejados pela sociedade do século 21. Precisarão desconstruir a ideia razoavelmente bem aceita de uma “ética à parte”, baseada no argumento velhaco de que os meios, por piores que sejam, justificam a finalidade de vencer.

O futebol é expressão cultural da sociedade brasileira. Não está acima das instituições, das leis e regulamentos e dos valores cultivados nesses tempos. A bola que entra no gol não pode tudo. Nem nas quatro linhas. Existe um contexto de responsabilidades sociais, ambientais e de governança que não está desconectado do que acontece antes, durante e depois do jogo nem dos públicos que dependem dele, que investem nele ou simplesmente o apreciam.

Nesses tempos em que os clubes se tornam Sociedades Anônimas Financeiras (SAFs), de alta profissionalização do desempenho, do ingresso crescente de receitas e de marcas que não querem se contaminar com a digital negativa de impactos socioambientais, o ESG pode melhorar o futebol sem comprometer a essência lúdica do jogo que é nossa paixão nacional.
Assim como uma empresa, um clube sério, identificado com os valores deste tempo, pode começar sua rota ESG adotando algumas medidas:

(1) Fazer um inventário dos grandes temas ambientais, sociais e de governança, avaliar os que podem gerar maior risco, endereçar soluções na forma de ações concretas, com metas, métricas e compromissos públicos;

(2) Organizar as ações sob o guarda-chuva de uma estratégia, conhecida de todos os públicos de interesse, e criar uma estrutura de governança para os temas de ESG;

(3) Estabelecer um plano de ação para gerir adequadamente, em suas estruturas (centros de treinamento, estádios e transportes), recursos como água, energias, resíduos e também as emissões de carbono. Compensar o carbono emitido em jogos e treinamentos, reciclar resíduos nos estádios, utilizar energia renovável, implantar um sistema de reuso de água para servir suas instalações são providências necessárias;

(4) Implantar um programa de compliance, com auditoria, ouvidoria, canal de denúncias, treinamento, códigos de ética e conduta, regulamentos e política de punições. O compliance constitui-se de um conjunto de procedimentos que identifica, classifica riscos operacionais e legais e cria mecanismos de detecção, prevenção e remediação. Promove uma cultura orientada por valores éticos, transparência e eficiência de gestão;

(5) Sendo o futebol um vetor de transformação social, os clubes podem criar ações semelhantes aos Programas de Desenvolvimento Educacional e Social obrigatórios para as SAFs e apoiarem a base de formação dos profissionais, o elo mais frágil de sua cadeia de valor;

(6) Elaborar uma política de compras sustentáveis assegurando que todos os suprimentos dos clubes (inclusive os materiais esportivos) respeitem critérios socioambientais ao longo de toda a cadeia de valor;

(7) Utilizar o forte vínculo com torcedores, a permanente exposição na mídia e a inserção em diferentes comunidades com o objetivo de “educar” stakeholders para causas como a ética, justiça, solidariedade, respeito à diversidade e aos direitos humanos, fair play, mobilidade sustentável, economia circular e questões climáticas. Um super exemplo é o Real Betis. Segundo lugar no Índice de Sustentabilidade no Futebol, do Brand Finance (o Liverpool, da Inglaterra, é o primeiro), o clube de futebol da Espanha criou uma plataforma de sustentabilidade chamada Forever Green, cuja missão é sensibilizar a população para a necessidade de lutar contra as mudanças climáticas. Com a participação de empresas e organizações, a plataforma atua em clima, reciclagem, mobilidade, preservação de natureza e ecoeficiência;

(8) Publicar relatórios de sustentabilidade, comunicando de forma transparente suas ações e compromissos para os mais diferentes públicos de interesse.

Encerro esse artigo recorrendo a uma frase emblemática do jornalista Nelson Rodrigues, apaixonado por futebol. Ela amarra bem as ideias aqui discutidas: “Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.” Mais ESG, menos resultado a qualquer custo.

**Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável e co-fundador de NetZero


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