O brasileiro tem uma característica, no mínimo, curiosa: a maioria da população tende a se relacionar com pessoas do mesmo grupo de cor ou raça. É o que apontou o Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2010: quase 70% da população brasileira têm relacionamentos amorosos desse tipo. A maioria dos brancos (69,3%) se une a pessoas do mesmo grupo de cor ou raça. Entre os pretos, 45,1% têm relacionamentos com indivíduos da mesma cor.
Para o desenvolvedor Fillipe Dornelas, essa busca encontrou algumas dificuldades dentro dos aplicativos de encontros tradicionais. Achar outras pessoas pretas no aplicativo era muito difícil. Eram poucos usuários e as interações nesses apps não estavam livres do preterimento afetivo e do racismo vivenciado na vida real. Foi então que ele começou a pensar em uma alternativa que desse mais espaço e protagonismo às pessoas pretas que recorriam a esses aplicativos.
Fillipe conversou com outras pessoas para entender se o projeto era viável e se outros sentiam os mesmos incômodos e necessidades que ele. Com um feedback positivo, ele apostou tudo na ideia (além de seu tempo livre, já que estava desempregado, e seu FGTS) e trabalhou por três meses na programação de um aplicativo de encontros.
Programação pronta, foi no trio Ana Paula Santos, diretora de marketing com experiência na aceleração de startups em uma multinacional de tecnologia; Bárbara Brito, designer responsável pela identidade visual do aplicativo; e Roger Cipó, creator e influenciador, que Fillipe encontrou os sócios que precisava para lançar o Denga, primeiro aplicativo de encontros para afrodescendentes no Brasil.
“Há uma reivindicação da comunidade negra a esses aplicativos de relacionamento. Primeiro, a ausência dessas pessoas. As pessoas negras não se encontram. Segundo, esses apps acabam sendo espaços de hipersexualização e objetificação desses corpos. E isso é um dificultador nas experiências. O Denga surge na tentativa de, além de criar essas conexões, criar um espaço seguro e saudável para que pessoas negras possam existir, fazer conexões de paquera, de flerte, enfim, sem serem atravessadas pelo racismo”.
É o que diz Cipó, cofundador do aplicativo, ao explicar o que o Denga tenta solucionar. Cipó foi na verdade uma inspiração para Fillipe com a série de lives que ele promoveu durante a pandemia para aproximar pessoas negras e formar casais. Foram mais de 300 horas e uma audiência de 200 mil pessoas pelo Brasil. Cipó relembra que estava já há um ano buscando parceiros para tocar uma ideia similar à do aplicativo, mas esbarrava sempre no quesito dinheiro. Por isso, quando Fillipe o procurou e contou sua ideia, ele não pensou duas vezes em fazer parte do projeto.
INVESTIMENTO
Lançado com recursos próprios e um investimento inicial de R$ 25 mil, o Denga entrou no ar no dia 14 de outubro deste ano. Em duas semanas, já somava quase 40 mil usuários cadastrados, sendo 1.000 assinantes do plano pago. O download é gratuito e o app está disponível nos sistemas Android e iOS em todo o Brasil.
Ana Paula, cofundadora e diretora de marketing do Denga, avalia que era “o momento certo” para lançar um aplicativo com esse foco. “O Brasil está falando disso o tempo inteiro. A pauta está latente”, afirma ela, que destaca o sentimento de exclusão que muitos negros sentem ao fazer uso dos aplicativos tradicionais de encontro. “Hoje você tem uma exclusão clara e não tem muitas pessoas negras nesses aplicativos. E o que acontece: depois de um tempo scrollando as pessoas, se você tem interesse em ter um relacionamento com uma pessoa negra, que esteja do seu lado na luta, você percebe que não tem muitas opções e acaba dando like em qualquer um que aparecer apenas por ser a única ou único negro. É a aquela sensação de estar numa empresa e ter só você e mais um negro. Rola uma sintonia, mas não necessariamente você quer se relacionar com aquela pessoa”.
O Denga tem alguns pilares-chave: criar conexões reais (propondo um ambiente seguro e antirracista); pertencimento (juntando pessoas que estão lutando por uma causa comum e tendo as mesmas vivências); e cura (na ideia de que uma pessoa negra merece ser amada e ter sua caminhada respeitada).
DOÇURA
O próprio nome do app busca criar um ambiente mais carinhoso. Na língua quicongo, ndengo significa doçura ou o que é macio, sedoso. O termo também é usado para designar um gesto afetuoso. Há um diferencial: no Denga, os usuários não dão ‘match’, dão ‘chamego’. De resto, a dinâmica é a mesma dos demais: fotos, descrição do seu perfil, ‘likes’ para a direita, e ’dislikes’ para a esquerda.
O modelo para monetização também é semelhante. Além do plano gratuito há uma assinatura para quem quiser acessar mais funcionalidades. O plano VIP custa R$ 14,99, segundo Ana Paula, o menor valor comparado aos outros aplicativos de relacionamento. Com ele, o assinante tem mais funcionalidades, como ver quem curtiu seu perfil e o plano passaporte, que permite, por exemplo, que o usuário que tem uma viagem programada já converse com pessoas de outras cidades a mais de 200 km (o limite de distância para as interações).
ESG
Quando falamos em ESG, o engajamento em causas deve fazer sentido para a comunidade e para o negócio. Para Ana Paula, é nesse ponto que os aplicativos tradicionais se distanciam ao não pensar em um ambiente mais igualitário para todos os públicos. Ela avalia que essas marcas não se envolvem mais porque não querem “comprar uma briga que não é delas”.
“O racismo não é uma invenção das pessoas negras, mas nós somos os grandes interessados em dar conta de tudo o que o racismo cria. E as pessoas negras são postas à margem, e nós não somos margem, somos mais da metade. As coisas precisam existir para a gente, é um princípio ético. Se ninguém faz, a gente que faz”.
A expectativa agora é ganhar mais usuários e avançar em todo o território brasileiro. Alguns dos próximos passos já estão definidos. A parceria com marcas que apoiem a pauta antirracista é um deles. A ideia é que essas empresas tenham um perfil no aplicativo onde o usuário possa optar por receber mais informações dessa marca.
Outra funcionalidade será um feed de notícias direcionado ao público negro, com conteúdos sobre ciência, entretenimento, empreendedorismo e também temas ligados ao racismo. As pessoas poderão dar ‘chamego’ a partir da curtida na mesma notícia, já abrindo um caminho para uma conversa.
“A ideia é evoluir para uma série de miniprodutos dentro do nosso serviço. Queremos fazer um feed alinhado com o que as pessoas estão fazendo, gerando inspiração para que elas se sintam empoderadas também a partir da informação. Queremos fomentar o black money, mais iniciativas para esse momento, e captar investimento para expandir para outros países”.
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