“Diversidade não é só boa intenção: é preciso dinheiro, sim”, alerta executiva que cunhou o termo diversity washing

Alguns insights acontecem da maneira mais inesperada possível, nos momentos em que nem podemos imaginar. Aqui o ano era 2016. A executiva Liliane Rocha estava sentada despretensiosamente no sofá de casa, passeando pelos canais de televisão, quando parou em uma propaganda muito bonita de uma multinacional. “Como mulher, negra e homossexual, esta publicidade falava direto ao meu coração”, contou. Mas espera aí. Foi só ela começar a se sentir identificada e feliz, que logo se lembrou de histórias polêmicas sobre a tal companhia – como demissões de mulheres durante o período de licença-maternidade, por exemplo. Aquele anúncio não passava de diversity washing.

Foi a partir daí que Liliane cunhou o termo, hoje amplamente utilizado, que descreve o engajamento com a diversidade – seja ela de gênero, racial, intelectual, regional etc. – presente no discurso e ausente na prática. Traduzindo livremente para o português, seria algo como “diversidade de fachada”.

O que começou como um acaso afortunado virou jornada pessoal e profissional. Liliane Rocha, que faz questão de contar que não compra de empresas com condutas duvidosas (para dizer o mínimo), há anos, vem atuando desde então com desenvolvimento social e sustentável em grandes companhias, aprofundou-se em diversidade e inclusão, fundou sua própria empresa, a consultoria Gestão Kairós, e hoje é conselheira de diversidade da AmBev, da Novelis e do CEO’s Legacy (Iniciativa da Fundação Dom Cabral e do Conselho do Futuro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa).

Reconhecida em 2022 como uma das 50 mulheres de impacto na América Latina pela plataforma de notícias Bloomberg Línea e presença de destaque por três anos seguidos no rol das 101 lideranças globais de diversidade e inclusão do World HRD Congress, Liliane Rocha atua no fígado das empresas e faz com que elas saiam da superficialidade (e facilidade) do discurso.

“As empresas finalmente entenderam que mulheres, negros, pessoas com deficiência e LGBTQIAPN+ têm renda e são consumidores e, por isso, fazem publicidade, eventos, produtos, serviços e propagandas voltados a eles. Mas não há necessariamente a vontade de colocá-los da porta para dentro.”

O problema, segundo ela, é que assim a conta não fecha. É justamente por visarem ao lucro que as empresas deveriam se preocupar com diversidade de verdade, que gera ganhos monetários, diminui o turnover e estimula criatividade e cocriação. “Empresa, quer um conselho para fazer diversidade de forma bem feita? Faça o que você se vangloria de fazer bem: gestão. De orçamento, de pessoas e de processos em diversidade.”

NETZERO: De 2016, quando você cunhou o termo diversity washing, para cá, a forma como as empresas tratam o tema evoluiu ou essa “lavagem” ainda é comum?

LILIANE ROCHA: Eu acho que ainda é muito comum. E muitas empresas caem em diversity washing por ingenuidade. Querem começar a trabalhar o tema, mas não procuram um especialista. Então, o que fazem num primeiro momento? Uma palestra. Eu sempre brinco: é legal, eu fico feliz quando me chamam para fazer uma palestra, mas eu acho que essa é a coisa mais fácil do mundo. Difícil é fazer, de fato, um diagnóstico. Imagina entender a demografia interna, o percentual de mulheres negras e pessoas com deficiência, de LGBTQIAPN+ no quadro funcional e na liderança de uma empresa com mil funcionários, 10 mil, 30 mil funcionários. Dá trabalho. Um diagnóstico desses leva pelo menos três meses. Uma palestra você contrata, alguém vai lá, faz em uma hora e pronto. Eu acho que é algo até orgânico. É fácil que se faça a “lavagem” da diversidade. Para que não seja assim, a empresa precisa ter uma consciência muito grande.

Como diferenciar letramento, por exemplo, de diversity washing?

O que eu falo muito é que o letramento é uma fase. Comunicação é meio, não é fim. Comunicação é uma das formas que temos para fazer uma gestão estratégica para diversidade e inclusão – comunicar os dados, fazer palestras, guias e outras formas de educação. Mas, além disso, também é necessário fazer gestão e governança, ter uma área com orçamento, equipe, diagnóstico, metas e indicadores de curto, médio e longo prazo e prestar contas. Se o letramento é feito apenas para comunicar, ele vira o fim e provavelmente a empresa vai incorrer em diversity washing.

O que mais caracteriza diversity washing?

Muitas vezes, no mês do orgulho LGBT, as empresas lançam a famosa camiseta de arco-íris com a melhor das boas intenções. Mas se essa camisa é só a camisa, então é diversity washing, ainda que o objetivo não seja esse.

Se a empresa só faz uma publicidade ou uma campanha bacana, ou só leva alguém para palestrar ou insere o tema na pauta do CEO sem que ele conheça as ações reais, ou lança um produto com o objetivo puro e simples de comunicar e não de transformar, de gerar mudança, é diversity washing. Posso até soar redundante, mas por que eu insisto nisso? Porque eu acho que quando a empresa faz esse tipo de coisa quase sempre é muito difícil de se perceber internamente. É sempre o outro que faz. Eu falo assim porque eu quero que as pessoas se percebam fazendo diversity washing. Ainda que por trás de uma boa intenção. Porque muitas coisas ruins, principalmente as estruturais, se escondem trás de boas intenções. E a gente não para, pensa e problematiza porque parar, pensar e problematizar é chato, dá trabalho.

Como não cair nessa armadilha?

Eu tenho trabalhado uma tríade que pega no âmago das empresas.

Tenho falado assim: “Empresa, quer um conselho para trabalhar diversidade de forma bem feita? Faça o que você, empresa, se vangloria de fazer bem: gestão”

Sempre ouvimos: “Nós somos muito bons de gestão – o poder público não é, as organizações sociais não são, mas nós brilhamos”. E aí, quando vamos falar de diversidade, as empresas não querem fazer gestão. Gestão de quê? Primeiro de orçamento. Para fazer diversidade, eu preciso de dinheiro, sim. Não dá para fazer voluntariamente, com poucos recursos, sem dinheiro. Vejo empresas com faturamento de 400 milhões que não querem separar 10%, 1% ou sequer 0,1%. Mas quando se tem orçamento, consegue-se ter especialistas. Ninguém vai cuidar do jurídico de uma grande empresa sem um advogado. Ou fazer finanças sem um contador. Mas toda empresa quer fazer diversidade sem ter um consultor especialista em diversidade. Por mais capitalista que seja, na hora de falar de diversidade quer para falar de coraçãozinho, de voluntariado…

Tenha um especialista e uma equipe estruturada. Eu não falo de diversidade porque eu sou mulher, negra e homossexual. Eu falo de diversidade porque eu estudo isso há 20 anos, dentro de grandes empresas, inclusive. Além disso, faça gestão de processos, ou seja, planejamento. Se tudo na empresa se faz com planejamento, por que quando falamos de diversidade ninguém quer planejar? Opa, opa, opa. Empresa, faça gestão em diversidade.

É essa, então, a maior dificuldade das empresas, que leva a diversity washing?

Sim, para mim, é querer tratar diversidade dentro de uma grande empresa como se fosse movimento social, como se fosse ONG, como se fosse tema do coração das pessoas. Nada nas empresas se faz assim, trabalha-se com planos anuais, quando muito com planos a cada cinco anos, mas diversidade se quer fazer assim. Aí o que acontece? Passam-se 20, 30 anos, e o quadro funcional não muda. Continua lá: 30% de mulheres, 30% de negros, 8% de mulheres negras, 5% de homossexuais – estou falando aqui de dados da Gestão Kairós que lançamos em 2022, mas que corroboram estudos de 10, 20, 30 anos atrás. Tudo muda nas empresas, menos os números de diversidade. Por que? Porque em diversidade não se “pode” fazer gestão.

Qual é o papel do gestor para fomentar a diversidade?

Eu brinco que o presidente de uma empresa é como se fosse uma figura mitológica. Ele passa, cumprimenta alguém, e dá um tapinha no ombro. A pessoa fica o dia inteiro se lembrando disso. Essa figura movimenta a cultura pelo simples fato de ela ser o exercício da cultura. O que eu quero dizer? Se esse CEO vira e fala: “Nesta empresa, nós não admitimos racismo. Nesta empresa, nós não admitimos machismo. Nesta empresa, nós não admitimos LGBTFobia ou capacitismo. Esses temas me são importantes e caros. Quem atuar em dissonância com esses princípios e valores não está no lugar certo”; espere um ano. Pessoas que tinham comportamentos horrorosos deixam de ter. Porque, diferentemente, do que acontece onde um CEO diz que isso é “mimimi”, elas não sentirão que têm margem para esse tipo de comportamento equivocado. Na Gerdau, por exemplo, havia pessoas que eram trans ou homossexuais e não falavam. Quando começamos o programa de diversidade, essas pessoas viram que podiam falar e se abriram. Agora se manifestam e participam de guias e vídeos falando sobre o assunto.

Evitar diversity washing não é também uma questão de gestão de risco?

Diversity washing gera publicidade ruim, perda de capital e reputação. Mas eu acho que aqui no Brasil isso é suave. O que eu quero dizer? Vemos com frequência exemplos de empresas que fazem propaganda, mas foram palco de uma série de atos racistas. No momento, sofreram grandes prejuízos, perderam muito em ações e capital. Mas seis meses depois já tinham tudo normalizado. Os consumidores voltaram a comprar. Essas empresas fazem as contas e pensam: “O que eu perdi em seis meses eu recupero em mais seis. É mais caro investir num programa de diversidade. Deixa continuar acontecendo.”

Quais são as vantagens competitivas de ser uma empresa diversa e sustentável?

O que eu tenho falado para as empresas? Primeiro que eu acho que elas ganham, monetariamente mesmo, se a gente pensar no tanto de multas e Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) que elas deixam de pagar. Então eu sempre falo: “Chama o jurídico e coloca na conta.” Quando consigo que isso aconteça, vemos que é um dinheirão. Além disso, pergunto: “Qual é o turnover?” Muitas vezes ouço números como 50% do quadro. Imagine uma empresa com 7 mil funcionários, de onde metade sai a cada ano. Por fim – e acho que os executivos são menos sensíveis a isso porque parece mais intangível –, existe a criatividade, a cocriação… Pessoas pensando diferente chegam a soluções diferentes, produtos diferentes, ideias diferentes, e prevêem riscos de formas diferentes e complementares. É um ganho desde o que se deixa de se perder ao que se passa a ganhar.

Por que parece tão difícil que elas entendam isso?

A conta não está sendo feita da forma correta: por visarem apenas o lucro, as empresas deveriam se preocupar com diversidade de verdade; justamente por estarem num sistema capitalista, deveriam atuar de forma consistente e séria em diversidade. Quando esse cálculo é bem feitinho e transparente, ele mostra que se está perdendo dinheiro de forma tangível. Muitos executivos não sabem quanto sua empresa paga em TACs – conheço empresas que pagam entre R$ 2 mil e R$ 10 mil por pessoa por dia. Se eles soubessem, iam ver que é melhor gastar 400 mil num programa de inclusão.

O que acontece é que nosso preconceito, nosso racismo, nosso machismo, nosso capacitismo, nossa LGBTFobia estruturais inconscientes são maiores do que nossa visão capitalista. Olha que loucura. Mas se essa conta fosse feita, certamente se chegaria à conclusão de que um projeto de acessibilidade estaria até barato. É o inteligente a se fazer. Mas preferimos ficar abraçados à nossa burrice do que pensar de uma nova forma e fazer as coisas de uma forma mais inteligente. Queremos fazer como sempre foi feito, como nossos avós faziam. Mas eles não viviam num mundo pautado pela quarta revolução industrial e pós-pandêmico, onde grandes empresas não sobrevivem ou sobrevivem de forma muito custosa quando não entram na organicidade do que é falar de diversidade.

O que é orgânico num mundo diverso e volátil? O que faz uma grande empresa estar up to date para lidar com os desafios desse mundo? Diversidade. Pessoas diferentes, com olhares diferentes, visões diferentes, lidando com esses desafios que hoje eu e você lidamos e que nossos avós não lidavam. Nesse mundo contemporâneo de que a gente tanto fala, mas que a gente ainda não entendeu, diversidade é fundamental. Quem não tiver diversidade, não vai ter perenidade nos próximos anos. Ou serão empresas muito tóxicas, com um custo muito alto pela diversidade que está lhes faltando. É que muita gente vai ter que pagar para ver, né?


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