No artigo anterior, publicado nesta sessão de mentoria aberta de NetZero, para quem deseja migrar para a área de ESG, abordei a importância de praticar valores e atitudes ESG. Hoje vou contar duas histórias que fortalecem uma recomendação complementar, igualmente importante: atue com e para empresas que respeitam os seus valores. O que significa dizer, em outras palavras: trabalhe com e para organizações que valorizam o humano que há (ou deve haver) nos processos de sustentabilidade empresarial.
Para discorrer sobre essa ideia pouco ortodoxa, recorro a dois líderes (também pouco ortodoxos) que conheci de perto, deixaram uma marca positiva e hoje, mais do que nunca, servem como referência de pensamento e ação. Um deles é Kees Kruythoff, ex-CEO da Unilever no Brasil.
Admirador confesso das ideias de Richard Barrett, precursor na defesa dos valores como diferencial para as empresas contemporâneas, Kruythoff não só leu os seus livros como se apoiou na teoria do economista inglês para criar, no começo dos anos 2010, um novo ciclo de planejamento de cinco anos para a Unilever do Brasil.
Aos 39 anos, o jovem executivo holandês, assumiu um desafio importante: dobrar o tamanho da empresa reduzindo pela metade os seus impactos ambientais e promovendo uma grande mudança no consumidor por meio do estímulo a pequenas atitudes diárias de sustentabilidade.
Aqui vale destacar um dado relevante na história de Kruythoff. Ele foi um dos poucos executivos a integrar o icônico programa Emerging Leaders Innovate Across Sectors (ELIAS), coordenado por Otto Scharmer no MIT, onde bebeu na fonte da Teoria U e esbaldou-se com a obra de Barrett. Nunca teve dúvidas, portanto, de que sua missão, mais do que técnica, exigiria um olhar humanizado.
Compreendeu, de partida, que não teria êxito sem promover uma “transformação cultural”: só um alinhamento radical entre os valores de cada colaborador e os valores da cultura da empresa elevaria o nível de compromisso com o novo padrão de desempenho desejado. Para ilustrar essa conexão entre o plano pessoal e plano de negócio, usou uma metáfora amazônica, a do “encontro dos Rios Negro e Solimões.”
Ao conferir alto valor de importância à “dimensão pessoal”, Kees conseguiu “humanizar” o processo de planejamento, dando aos colaboradores a oportunidade de “sentir” a estratégia, e não apenas de entendê-la racionalmente. Para tanto, lançou mão de “jornadas”, rituais de imersão com as lideranças e as equipes, durante os quais discutiu, em conjunto, os objetivos do seu plano e também os temas relacionados ao crescimento pessoal dos colaboradores.
“Para obter alta performance, o colaborador precisa ter uma vida equilibrada do ponto de vista físico, emocional e espiritual, com metas pessoais bem resolvidas nos vários papéis que desempenha”, como os de pai, marido, mãe, esposa, parente, vizinho e cidadão do país. Nessa perspectiva, os colaboradores foram estimulados a fazer um “balanço holístico” de suas vidas, capaz de torná-los pessoas mais satisfeitas, felizes e realizadas. “Mente, coração e espírito devem andar juntos”, disse-me Kees, em entrevista à Plataforma Liderança Com valores.
De Barrett, o executivo emprestou também uma dinâmica de apoio ao “encontro dos dois rios.” Os funcionários foram convocados a: 1) escolher dez valores individuais entre cem palavras apresentadas, 2) analisar os valores que fazem parte da cultura da empresa e 3) recomendar quais deveriam fazer parte. Segundo Kees, a construção coletiva e o fortalecimento de valores comuns “tornou a companhia menos hierarquizada, mais ágil e vibrante, com menor desperdício de energia e menor frustração entre as pessoas”, sintetizou.
O SEU VALOR PESSOAL
Aqui vale deixar uma pergunta: “A empresa com ou para qual você quer trabalhar em ESG está considerando, de alguma forma, o seu valor pessoal e o valor pessoal dos demais líderes e colaboradores na hora de fazer um planejamento ou definir uma estratégia de sustentabilidade? Com Scharmer, no ELIAS, Kruytoff desenvolveu quatro competências, que, na minha opinião, devem possuir todos os que desejam trabalhar com ESG:
(1) Capacidade de ouvir e dialogar, indispensável num mundo que exige a construção de relações com diferentes stakeholders, cujas posições e modos de pensar são distintos, não raro divergentes.
(2) Empatia, a capacidade de interpretar o mundo “sentindo” a realidade a partir de diferentes pontos de vista.
(3) Open-will (vontade aberta), a capacidade de vivenciar as realidades que se deseja transformar, libertando-se de julgamentos preconcebidos e observando suas dinâmicas na direção de uma fonte de conhecimento mais profunda.
(4) Capacidade de prototipar, isto é, converter as descobertas da aprendizagem em resultados práticos.
UMA OUTRA LIDERANÇA
O outro personagem desse artigo é Rodrigo Kede, ex-CEO da IBM, hoje presidente para as Américas da Microsoft. Num dos trechos mais marcantes de seu depoimento à Plataforma Liderança Com Valores, em 2013, o jovem executivo reforçou a sua crença de que os valores conectam as pessoas com as empresas porque conferem significado e ampliam o propósito dos negócios. Essa afirmação soaria vaga não fossem, ele Rodrigo, e os líderes da IBM, exemplos genuínos de indivíduos que escolhem uma empresa “pela possibilidade de impactar positivamente a sociedade.”
Na IBM, há dois programas globais que funcionam como uma espécie de “laboratório” para líderes com valores. Um é o Smarter Cities Challenge (SCC) e o outro, o Services Corps (CSC) Ambos representam iniciativas, emblemáticas em sua cultura organizacional, pelas quais a IBM seleciona e envia os seus líderes mais promissores para cidades em desenvolvimento, com a finalidade de atuar pró-bono na melhoria da qualidade de vida das comunidades locais.
Como de praxe, após a experiência que pode levar de um a três meses, o CEO costumava chamar o executivo para uma conversa de avaliação não só sobre resultados, mas também sobre o fortalecimento de valores como empatia, humildade e altruísmo, e soft skills como resiliência, capacidade de escuta ativa e cooperação. Foi o que aconteceu com uma de suas líderes, recém-chegada de uma missão de Katowice, na Polônia, onde, em conjunto com uma equipe multidisciplinar e autoridade locais, ela capitaneou a elaboração de um plano estratégico para a cidade.
Na conversa de feedback, ela disse ter colecionado alguns aprendizados que acho importantes para quem quer trabalhar com ESG:
(1) Fazer mais com menos, otimizando recursos normalmente escassos e focando nas ações que podem fazer mais diferença;
(2) Ser mais humilde, reconhecendo que, além de ensinar, aprendeu muito também com pessoas mais simples e menos graduadas;
(3) Aceitar a diversidade de opiniões e lidar com as altas expectativas, sem ansiedade ou pressa;
(4) Praticar a escuta ativa para obter o máximo de colaboração, valorizando não só as ideias mas os sentimentos dos parceiros ao longo da missão;
(5) Estabelecer relações mãos horizontais e desenvolver enorme respeito pelas pessoas e por sua cultura.
O saldo, na visão da executiva, foi de muita realização profissional. Mas também autorrealização, sentimento de pertença e orgulho do crachá. Programas deste tipo nada mais fazem do que acolher a demanda das jovens gerações de profissionais por empresas com propósito, busca de significado no trabalho e carreiras de impacto. “As pessoas gostam de marcar diferença e ajudar os outros. Engajar-se numa jornada como essa é visceral. O líder conhece outra realidade, volta diferente e passa a valorizar as relações”, disse Kede.
Pergunta importante no topo do caderninho das provocações úteis: “Por que experiências como essa, de imersão em realizações desafiadoras, que exercitam competências técnicas e atitudinais, não são mais difundidas nos programas de educação corporativa de empresas?”
Registro uma recomendação final. Desconfie de empresas que, em seus processos de ESG, não discutem valores, não desenvolvem as competências atitudinais dos líderes e colaboradores, não valorizam a intersecção entre os propósitos pessoais e o propósito corporativo, não estimulam a participação de suas pessoas no fortalecimento dos valores empresariais, não conectam metas e planos de ação com agendas orientadas por valores humanos, como a 2030, da ONU. Que coloquem os números à frente das pessoas. Ou pior ainda, que preguem sustentabilidade como vetor de negócio sem praticar coerentemente os valores (diversidade e inclusão, ética e transparência, respeito ao outro e ao meio ambiente) que sustentam ou deveriam sustentar processos mais legítimos de ESG.
**Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável e cofundador de NetZero.
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