O que pode haver de comum entre os moradores do complexo de favelas da Maré (RJ), os agricultores do Sudão e os indígenas da tribo Munduruku, na Amazônia. Apesar de viverem em geografias diferentes, com culturas distintas, os três grupos são vítimas mais vulneráveis das mudanças climáticas. Sofrem, na pele, a chamada injustiça climática. Os seus interesses, historicamente minimizados, serão discutidos na COP 27 no âmbito das conversas difíceis sobre “perdas e danos.”
“Perdas e danos” é o título atribuído, nas negociações climáticas internacionais, a uma frente cujo objetivo tem sido evitar ou reduzir ao máximo os prejuízos gerados pelas mudanças climáticas, principalmente às comunidades mais vulneráveis. Os habitantes da favela carioca, da tribo amazônica e das margens do Nilo não foram responsáveis pelo pacote de carbono da era industrial, mas pagarão, com ameaça ao seu bem-estar, uma parte dolorosa da promissória. Chuvas mais intensas colocam em risco a vida de quem mora em habitações urbanas precárias. Seca mais intensa inviabiliza o futuro dos que dependem da agricultura de subsistência no Chifre da África. A potencial savanização da Amazônia destrói as perspectivas de vida das populações indígenas que a habitam.
Isso explica o encaminhamento à COP27 da Carta dos Direitos Climáticos da Maré, elaborada em conjunto com a The Climate Realy Project, de Al Gore. Justifica a participação na conferência de lideranças do Sudão, um dos países mais pobres do mundo. Torna mais oportuna a presença no Egito da jovem ativista Val Munduruku, do Engajamundo. A Maré quer a atenção de políticas públicas que reduzam o racismo e a injustiça climáticos. Val deseja despertar a cumplicidade do mundo para o desafio de manter a floresta em pé. O Sudão pleiteia um naco dos US$ 100 bilhões prometidos há 13 anos (e ainda não liberados) pelos países ricos para se adaptar aos efeitos perversos das mudanças climáticas.
Retórica diplomática
Nas mesas de negociações, a pauta dos diplomatas é cobrar responsabilidades e exigir ação de governos em torno do desafio de limitar o aquecimento global a 1,5 grau. Entre os cientistas do clima, não há nenhuma dúvida: tanto a meta de 1,5 grau quanto a de 2 graus já não são mais possíveis. E ponto. Professor de Física da USP, cientista-líder do Painel Intergovernamental de Cientistas do Clima (IPCC), o paulistano Paulo Artaxo tem as projeções na ponta da língua. E elas não são exatamente alvissareiras. Com um volume de emissões de carbono da ordem de 40 bilhões de toneladas por ano, o aumento da temperatura deve chegar a 3,2 graus. Em regiões como o Brasil, poderá bater em algo entre 4 graus e 4,5 graus. “Isso tudo se nada for feito”, completam os diplomatas. Retórica. O aumento da temperatura média do planeta em 2021 revela que nada tem sido feito. O resto é discurso usado para manter o mundo em guarda para os difíceis acordos em consenso.
Showroom egípcio
Experiente na cobertura de conferências das partes da ONU, um amigo jornalista, batendo cartão na COP 27, compartilhou uma impressão que também é a minha sobre eventos deste tipo: fora das plenárias (território dos diplomatas e cientistas) e dos painéis (zona de encontros temáticos de líderes e autoridades), a conferência do Egito lembra uma feira de negócios, semelhante às que acontecem no Anhembi, em São Paulo. Repleta de estandes bonitos, com montagens suntuosas. E pequenos e grandes palcos para exposição de ideias.
Países tentam vender suas potenciais contribuições para um mundo com menos carbono. O do Brasil, por exemplo, apregoa nossa exuberante capacidade de gerar energias renováveis. Países pobres tentam vender a ideia de que precisam de ajuda financeira para adaptação às mudanças climáticas. Empresas especializadas vendem soluções para apoiar governos e empresas no cumprimento de desafios de redução de emissões. Empresas líderes, incluindo as grandes brasileiras, vendem a imagem de que estão fazendo direito a lição de casa –ainda que não no ritmo e com a consistência necessárias—para demonstrar prestígio, agradar investidores estrangeiros e jogar para a torcida aqui no Brasil.
Segundo o colega jornalista, o aspecto “business” das COPs cresceu muito nas duas últimas edições, com a ascensão do ESG no mundo dos negócios. O mundo é mesmo uma quitinete de trade offs.
A dobradinha Lula-Marina
Na COP 15, de Copenhagen, em 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, transformou Dilma Roussef, sua ministra e candidata à presidência, em chefe da comitiva brasileira. Zero fluente no tema, Dilma cometeu pequenas gafes, fugiu de perguntas e não causou boa impressão. Marina Silva, ex-ministra do Meio Ambiente de Lula, desafeta de Dilma (com quem travou uma batalha no caso da licença ambiental das usinas de Santo Antonio e Jirau), desfilou por tapetes vermelhos, sob afagos dos principais líderes ambientais do planeta, encantados com o bem-sucedido plano de redução de desmatamento da Amazônia.
Monolingue, Lula chegou no meio do encontro e foi convocado pelo então secretário da ONU para interceder junto a Barak Obama. Havia uma expectativa -depois, enfim, frustrada- de que o presidente dos EUA assumisse um compromisso mais firme com metas de redução de emissões de carbono.
Marina e Lula, cada um a seu modo, circularam como pop stars. Treze anos depois, no Egito, é provável que a história se repita. Agora, em circunstâncias diferentes: com a floresta amazônica em curso acelerado de destruição, os líderes globais esperam um recado forte em defesa da proteção desse bioma. Senha para a retomada de prestígio internacional e abertura de investimentos.
**Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável e cofundador de NetZero
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