O discurso na COP 27 confirmou a expectativa do presidente do Egito e de muita gente presente à conferência do clima: o recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva, saiu na frente, e com larga vantagem, na corrida para o posto de principal liderança global climática.
Para quem acompanha a história do presidente, é um feito e tanto. Difícil de imaginar até uma década atrás. Inevitável constatar que ele se reinventou nos últimos anos. O Lula ativista, que trouxe o tema climático para a campanha, e fez questão de destacá-lo no discurso da vitória em 30 de outubro, não parece o mesmo de 2008 que se manteve ao lado da desenvolvimentista Dilma Roussef contra a ambientalista Marina Silva num embate de ministras em torno do maior ou menor rigor na liberação das licenças ambientais das usinas de Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira (RO.)
Não lembra nem de longe o Lula pintado por seu ex-chefe de gabinete Gilberto de Carvalho, numa entrevista à Veja, há mais de uma década, como alguém indiferente a um assunto que considerava elitista, típico da classe média-alta da Vila Madalena, e, portanto, muito menos importante do que o projeto de dar ao brasileiro o direito de três refeições diárias.
Bom para Lula, o Brasil e o planeta que o presidente eleito tenha compreendido não só a relevância do tema das mudanças climáticas nesta altura do campeonato do século 21, mas o impacto delas para a segurança alimentar e o desenvolvimento econômico dos mais vulneráveis.
Não por acaso, entre as melhores passagens do discurso na COP 27 estão as que associam os efeitos das mudanças climáticas sobre as populações mais pobres do planeta e apontam o propósito do Brasil de ser um agente de soluções, como a construção de uma aliança mundial pela segurança alimentar, pelo fim da fome e pela redução das desigualdades, com total responsabilidade climática.
MOMENTO “BRASIL” ESTÁ DE VOLTA
Nenhum elemento importante ficou de fora numa fala que revelou um surpreendente (para o próprio Lula) olhar sistêmico sobre os desafios do clima. Nenhuma mensagem-chave deixou de ser dada. Os diferentes tipos de público saíram satisfeitos da plenária. Um golaço diplomático.
Para os líderes internacionais, teve o momento muito esperado do “Brasil está de volta.” Apoiado em suas credenciais passadas (entre 2004 e 2012, reduziu em 83% o desmatamento no Brasil), Lula deixou claro que, em seu governo, não vai economizar esforços para barrar a degradação não só da Amazônia, mas de “todos os biomas” brasileiros até 2030. Ponto para ele por lembrar ao mundo que o Brasil não é só Amazônia.
Ainda sobre a Amazônia, a bolacha mais gostosa do pacote, reconheceu sua importância geopolítica para humanidade, o seu papel estratégico na segurança climática global e a necessidade de receber apoio financeiro externo para a sua preservação na forma de investimento e pesquisa científica. Sempre sob a liderança do Brasil, sem abrir mão da soberania na gestão do seu maior bioma — antecipou-se a críticas encomendadas que poderão surgir lá na frente.
Aproveitou a previsível reverberação internacional de seu discurso para dizer ao mundo que o Brasil “voltou” também para cooperar com os países mais pobres da África, lutar por comércio justo e paz entre as nações e ajudar na construção de uma nova governança global pacífica, dialógica e multipolar.
MOMENTO “NINGUÉM ESTÁ SALVO”
Cobrando mais empatia e a necessidade de construir confiança entre os povos, Lula cutucou os países mais ricos e poluidores, convocando-os a superar seus interesses nacionais imediatos em nome da construção de uma nova ordem internacional mais equânime e melhor para o futuro da humanidade. Trouxe dados desconfortáveis sobre os impactos do aquecimento global para a saúde humana. E lançou mão de números da Oxfam que sempre causam mal-estar às pessoas mentalmente sãs: o pedaço 1% mais rico da humanidade deve emitir 70 toneladas de carbono por ano enquanto os 50% mais pobres emitirão, em média, apenas uma tonelada. Desigualdade climática na veia.
Exercitando sua verve estadista, defendeu a tese de que o combate às mudanças climáticas é parte do enfrentamento contra a pobreza e por um mundo menos desigual.
Consciente de sua influência como líder, Lula cobrou, em tom indignado, os países ricos a tirarem do papel o fundo de R$ 100 bilhões de apoio à adaptação dos países mais vulneráveis. Fez o que dele se esperava. Mas foi um pouco além e assumiu um papel de “cobrador”, pelo qual será cobrado em algum momento.
MOMENTO “O BRASIL QUER LIDERAR”
Teve ainda o momento “o Brasil quer liderar”, uma nova ordem, usando sua capacidade única de mediação equidistante entre pobres e ricos. Enfático como de praxe, mas atropelando na dicção de uma voz cansada, Lula listou uma série de medidas que fortalecem essa proposição: reativação do Fundo Amazônia (Alemanha e Noruega) de US$ 500 milhões, fortalecimento do acordo de cooperação entre Brasil, Indonésia e Congo (juntos, possuem 52% das florestas tropicais do planeta), realização da Cúpula dos Países Membros do Tratado de Cooperação Amazônica, auto-convite para receber na Amazônia a COP 30 em 2025, e priorização da agenda climática no G20 que o país presidirá em 2024. Compromissos funcionam melhor do que boas intenções.
MOMENTO “RECADOS INTERNOS”
Chamou a atenção ainda o momento “recados internos”, cujo objetivo parece ter sido o de impactar a audiência local mais afinada com o negacionismo climático, a licenciosidade ambiental e o desrespeito à proteção das áreas indígenas. O combate às mudanças climáticas, destacou, vai ter posição de destaque na estrutura do seu governo.
Órgãos de fiscalização e sistemas de monitoramento serão rearticulados. Crimes ambientais terão diligência “sem trégua.” Não haverá condescendência em relação a atividades ilegais de garimpo, mineração, exploração de madeira ou ocupação agropecuária indevida.
Novidade antecipada ao público, criará o Ministério dos Povos Originários para dar vez e voz aos povos indígenas e amazônicos na discussão de um modelo de desenvolvimento sustentável, contrário ao modelo de destruição da floresta “que gera pouca e efêmera riqueza para poucos, e prejuízo ambiental para muitos.”
Muito diferente do Lula de 2007, aquele das mãos orgulhosas manchadas de óleo que, ingenuamente atribuiu à descoberta do pré-sal, um pé de meia vitalício para o futuro do Brasil, o Lula de 2021 destacou no discurso da COP 27 o protagonismo do Brasil na transição energética e o imenso potencial do país, em particular no Nordeste, em energia eólica, solar, hidrogênio verde e biocombustíveis. Pregou a agricultura regenerativa. E reforçou, também de forma inédita para Lula, que o esforço em cuidar das questões ambientais vai gerar empregos verdes de boa qualidade, oportunidades de cidades mais sustentáveis e melhor qualidade de vida.
MOMENTO “REALIDADE“
Entre o discurso pela floresta em pé e a vida real, há um abismo marcado por dificuldades práticas que vão desde a recuperação de estruturas de fiscalização até a definição de orçamento para ações. Marina Silva, candidata a Ministra de Meio Ambiente, tem falado sobre elas, nos corredores da COP 27, até para afastar a ilusão de que o desmatamento vai acabar um dia após a posse do presidente Lula. Não vai. É uma maratona, não uma corrida de cem metros.
Se quiser vencer a prova, Lula e suas equipes podem recorrer ao check list de cinco medidas centrais recomendadas pela Coalização Brasil, Clima, Florestas e Agricultura (movimento com 340 representantes do agronegócio, empresas, ambientalistas e academia): (1) encaminhar ao Congresso uma proposta legal para criar a autoridade nacional do clima; (2) recuperar os programas de combate ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado; (3) retomar a participação da sociedade civil nas instâncias de decisão; (4) definir nova governança para o Fundo Amazônia; e (5) resgatar a homologação das terras indígenas preparadas para desmarcação.
Trabalho é o que não vai faltar. Um teste de fogo para o novo Lula.
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