O fim da hierarquia tradicional: empresa do interior de SP inova e inaugura o modelo de autogestão

Como você imagina a gestão de uma empresa familiar, que está no mercado há 40 anos? A CPI Tegus veio para desmontar todas as imagens clássicas de conservadorismo, hierarquia rígida, liderança tradicional e pouco espaço para inovação. A fabricante de fitas de borda que atua no segmento de acabamento de móveis, inaugurou, há cinco anos, um modelo de autogestão raro no país. Na fábrica, localizada no interior de São Paulo, as responsabilidades estão distribuídas entre todos. Inclusive entre os funcionários diretos da linha de produção.

A inspiração para a mudança no sistema de gestão veio do livro “Reinventando as Organizações”, de Frederic Laloux, primeira leitura de 2018 de Livia Zappa, diretora de gente e gestão da empresa e filha de Carlos Antônio, um dos sócios, atual presidente do conselho.

“Apesar das borboletas na capa, o livro é pragmático: trata de empresas reais e desmistifica a autogestão como metodologia exclusiva de startups ou empresas de tecnologia”, brinca Zappa.

“Quando terminei de ler, senti que já poderia implementar algumas ideias de imediato, como a adoção de um manual de integração mais moderno, práticas de feedback, e modelos de avaliação, mas não pensava que a autogestão pudesse ser uma delas no curto prazo – ainda assim, comecei a provocar nossas lideranças e presenteei nosso CEO, Daniel Gama, com um exemplar.”

A HORA E A VEZ DO LÍDER

A vontade de inovar encontrou a necessidade quando, alguns meses depois, o irmão da executiva anunciou que deixaria a empresa para focar em outros projetos. Se sobrava espírito inovador na equipe comercial de 12 profissionais sob seu comando, faltava um líder apto a substituí-lo – a maior parte dos funcionários estava em desenvolvimento e ainda não acumulava experiência suficiente de carreira. Por que, então, não colocar em prática aquela ideia de Laloux?

Zappa e a alta cúpula contrataram, então, dois consultores e reservaram um sítio para um final de semana de imersão na autogestão. Cada detalhe da metodologia foi esmiuçado e, na segunda-feira, a equipe passou a operar no novo formato – sob supervisão direta da líder de RH e de Gama, em um trabalho que envolveu acompanhamento direto, elaboração de estratégia, mentoria e muita escuta.

Como passou a ser a rotina, que hoje está na companhia como um todo, em diferentes níveis, dependendo da área:

  • Um guia de governança estrutura todas as regras da autogestão de forma transparente: como funciona a gestão por papéis, como acontecem a tomada de decisões, a condução de processos, a solução de problemas e a mediação de tensões.

  • Um dos grandes benefícios do sistemas é a distribuição do poder. Cada equipe é considerada um círculo: os profissionais têm cargos, mas não há uma hierarquia tradicional. O líder é o profissional mais sênior, que tem o papel de desenvolver a equipe, dando a palavra final sobre promoções e aumentos.

  • Em uma reunião chamada “fórum de governança”, são decididos e desenhados os papéis de cada funcionário. As decisões não funcionam por vontade da maioria, mas por consentimento. A menos que haja uma objeção com argumentação sólida, esta é uma responsabilidade do líder.

  • São os acordos – regras documentadas que regem a atuação e os papéis do time – que conduzem todos os movimentos. Há acordos de governança de toda a empresa (exemplo simples: como realizar eventos) e aqueles que são específicos de cada time.

  • Os papéis são a transformação do cargo. Ou seja, atribuições que complementam funções técnicas. Todos os círculos contam com facilitador (líder, conduz os fóruns), escriba (registra reuniões), “contatinho” (controla burocracias, como cartões de ponto, férias e atestados), síndico (responsável pela estrutura da sala, ou seja, cuidar da manutenção, abrir chamados de troca de lâmpada, pedir recursos de TI) e guardião da governança (garantidor da metodologia). Cada time pode criar papéis específicos.

  • As questões operacionais são decididas no fórum de gestão, que pode ser semanal, quinzenal ou mensal, dependendo da equipe. É dividida em check in (todos contam como se sentem), check list (cada profissional presta contas para sobre o que foi ou não feito), apresentação de indicadores de performance individuais, follow up de projetos, tratativa de problemas (para serem resolvidos, problemas relativos ao trabalho são estruturados com começo, meio e fim), processamento das tensões (relacionamentos interpessoais) e check out.

“A partir do momento que os funcionários sentiram que eram parte de todo o processo da empresa, o nível de entusiasmo aumentou, e os resultados melhoraram: nós passamos a nos regenerar com mais facilidade dos tombos”, conta Zappa, que também ganhou papel no time, contribuindo para o desenvolvimento e o fortalecimento da cultura de autogestão.

Outras equipes foram se interessando pela nova forma de trabalhar e, pouco a pouco, seguiram o exemplo. Hoje, a empresa não conta com um organograma convencional, em que os cargos estão posicionados em uma escadinha corporativa, mas com círculos de equipes que orbitam a estrutura geral.

Mais recentemente a autogestão chegou também ao chão de fábrica e, embora ainda não abarque todos os acordos e papéis, já tem norte definido: quinzenalmente acontecem as reuniões de equipe, como o fórum de gestão é chamado, com tomada de decisões por aconselhamento e processamento de tensão.

DESAFIOS

Como todo case de sucesso, a jornada da CPI Tegus é permeada por desafios. Muitos profissionais (de todos os níveis) não se adaptam ao sistema e, segundo Zappa, acabam sendo desligados.

Um dos aprendizados mais importantes tem a ver com liderança: mesmo sem a figura do chefe tradicional, líderes surgem naturalmente dentro dos círculos. Quem fica com o papel são profissionais mais experientes, capazes de assumir naturalmente novas responsabilidades.

Por isso, no ano passado, a empresa passou a centrar esforços justamente em desenvolver essas figuras sêniores para se tornarem líderes evolutivos. Por meio de um programa de treinamento focado em escuta e comunicação clara e transparente, a ideia foi quebrar de vez com a figura do chefe que detém toda responsabilidade e poder de decisão e fomentar a de catalisador da cultura e desenvolvimento de pessoas na equipe.

“Hoje afirmo tranquilamente que nossas lideranças estão muito melhores do que quando começamos a jornada: cresceram como pessoas e viraram agentes transformadores por onde passam, inclusive dentro de suas famílias.”

Outro mito que precisa ser derrubado frequentemente é o da liberdade, do “eu faço o que eu quero”. “A verdade é que tudo é muito compartilhado, e os acordos deixam muito claro o que pode e o que não pode ser feito”, reforça Zappa.

“Em vez de se queixar do colega no cafezinho, temos ferramentas como mentoria e comunicação não-violenta para lidar com a questão de outra forma, para que seja possível se apropriar dela. O desafio é enorme porque todos nós viemos de décadas de uma formação educacional passiva e isso não muda quando chegamos ao ambiente de trabalho – a maioria dos profissionais espera ouvir o que tem que fazer. Eu brinco que autogestão não transforma tudo em magia – pelo contrário, os problemas vêm pra mesa, e os conflitos aparecem muito –, mas torna a operação mais fluida.”


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